27/02/2002 - 7:00
O ex-especulador: “Os mercados são amorais. Não se pode deixar tudo para eles”
Você não vai acreditar no que está escrito nas linhas abaixo. Foi um dos ataques mais violentos que já se ouviu no Fórum Econômico Mundial, encontro da elite financeira internacional, realizado no mês passado, em Nova York. ?Há uma ameaça (à globalização) que vem das pessoas que consideram inaceitável o mundo em que vivem. A menos que tratemos destas questões, o sistema pode não sobreviver?, alertou o palestrante. ?Não se pode deixar tudo para os mercados?, continuou, ?os Estados Unidos devem ser líderes para a criação de uma sociedade global e não apenas de uma economia global?. O autor das frases também classifica os mercados de ?amorais? e pede ?uma mão visível? para controlar o movimento dos capitais financeiros. O que mais surpreende nesse discurso não é o seu conteúdo, mas seu autor. Depois de 30 anos construindo a fama de maior especulador financeiro do mundo, George Soros aparece em público como se tivesse passado por uma metamorfose profunda: o outrora impiedoso lobo dos capitais errantes quer ser o pregador de uma nova era, a da globalização justa.
Soros, agora, condena tudo o que praticou durante sua vida, como se estivesse renegando o passado e fazendo um mea-culpa por seus pecados financeiros. O novo Soros quer limitar a especulação internacional. O antigo Soros apostou US$ 10 bilhões contra a libra esterlina, em 1982, quebrou o Banco da Inglaterra e embolsou US$ 1 bilhão em lucros. O novo Soros quer proteger os países pobres. O antigo Soros foi acusado de iniciar a crise da Ásia, em 1997, ao especular pesado até provocar a desvalorização do bath tailandês. O novo Soros quer impor controles ao movimento de capitais. O antigo Soros dirigiu um dos fundos de investimentos mais agressivos do mundo, que rendeu imbatíveis 32% ao ano durante três décadas. Não há um caso de conversão tão radical no mercado financeiro internacional como o do novo apostolado de Soros.
O evangelho do especulador arrependido está descrito em uma espécie de bíblia que chega às livrarias dos Estados Unidos e da Inglaterra no próximo dia 7 de março. Em seu novo livro, ?George Soros on Globalization? ? a que DINHEIRO teve acesso com exclusividade ?, o velho financista, que já vinha dando sinais de sua conversão nos últimos meses, revela estar mais radical do que nunca, mas às avessas (leia trechos na pág. 71). Nas 189 páginas da obra, ele defende controles ao capital internacional, sugere reformas radicais em instituições como o FMI e apresenta um ambicioso plano para reformar o capitalismo em escala global. Soros quer uma globalização mais humana, mais justa, com menos pobreza e mais liberdade para os povos. ?Meu livro não vai curar todos os males da globalização ? nada vai ?, mas deve ajudar a fazer do mundo um lugar melhor?, prega o novo Soros.
A nova obra “Escrevi esse livro contra a união de esquerda e direita”
Trata-se de um novo capítulo na biografia do investidor. Aos 71 anos, ele age como quem acredita ter sido abençoado com mais dinheiro do que teria direito numa vida. Como administrador do mais bem-sucedido fundo de investimentos dos EUA nos últimos 30 anos, o Quantum Fund, ele acumulou uma fortuna pessoal estimada em
US$ 8 bilhões. Desse total, ofertou US$ 2,8 bilhões para projetos em defesa da democracia liberal. O resto, diz ele, será doado até completar 80 anos. Soros está devolvendo tudo o que ganhou na sua trajetória vitoriosa no mercado financeiro. O homem que metia medo em governos e bancos centrais agora tem uma missão: quer reformar ? e ajudar a salvar ? o capitalismo. Em seu livro, Soros propõe um ambicioso programa de ajuda aos países pobres e de reforma das finanças internacionais. Seu projeto de resgate do capitalismo prevê a criação de um novo acordo de Bretton Woods, celebrado no final da Segunda Guerra Mundial, e que serviu como base para a criação de instituições como o FMI e o Banco Mundial. Nesse Bretton Woods sonhado por Soros, ele mesmo teria um papel parecido com o que o célebre economista britânico John Maynard Keynnes teve no acordo original. ?Acredito que eu tenho algumas qualificações fora do comum para embarcar nesse projeto. Eu tive sucesso no mercado financeiro global, o que me deu uma visão privilegiada de como eles operam?, escreve Soros na introdução de sua obra.
Ao lado dos militantes. A base do programa de reforma do capitalismo proposto pelo investidor apresenta, em muitos pontos, argumentos semelhantes aos dos militantes contra a globalização. Soros diz que o capitalismo foi bem-sucedido em unir mercados e gerar negócios. Mas a globalização não diminuiu a pobreza e ainda desarmou os Estados nacionais. ?A capacidade de o capital se mudar para outros lugares mina a possibilidade dos Estados de fornecer serviços sociais?, ataca. Sua crítica se estende à incapacidade de organizações como o FMI e o Banco Mundial de atenuarem o problema. ?Não houve aumento na capacidade de nossas instituições financeiras internacionais de resolverem essa deficiência.?
Para corrigir os rumos da globalização, Soros defende uma medida que seria impensável para quem era identificado como a maior raposa do mercado financeiro internacional. ?Mercados financeiros não tendem ao equilíbrio, eles precisam de uma mão visível para guiá-los e evitar que saiam dos trilhos?, escreve o investidor, numa crítica aos ultraliberais, que defendem a tese de que os mercados se equilibram e devem se auto-regular. O novo Soros chama esses ultraliberais de ?fundamentalistas de mercado? e diz que eles são uma ameaça ao futuro do capitalismo global, assim como os militantes contra a globalização. ?Mercados são amorais… mas a sociedade não pode funcionar sem alguma distinção entre o certo e o errado?, escreve ele.
Soros pede maior controle sobre a movimentação dos capitais porque está preocupado com o futuro do capitalismo. Para ele, os atentados terroristas de 11 de setembro e as manifestações contra a globalização seriam sinais da insatisfação com o capitalismo mundial. Uma de suas maiores preocupações é com a postura dos países ricos, a começar pelos Estados Unidos. Para Soros, a resposta americana aos questionamentos ao capitalismo global têm se limitado a atitudes de repressão e punição, quando deveria haver maior preocupação em ajudar os países pobres e criar uma globalização mais justa. ?Não é suficiente levar a cabo uma guerra contra o terrorismo, as pessoas também precisam de uma visão positiva, de um mundo melhor à frente?, escreve Soros. Para ele, os Estados Unidos deveriam liderar uma coalizão de países ricos para dar incentivos para ?que os governos (de países pobres) adotem determinadas políticas para que as sociedades se desenvolvam.?
Comitê de salvação. O plano de salvação de Soros prevê ainda a formação de um ?mercado? de ajuda externa aos países pobres. Na sua opinião, as doações dos países ricos hoje são malgastas nas nações em desenvolvimento. A razão é que os países doadores não entendem da realidade local e insistem em tomar conta dos projetos. Ou ocorre o contrário, muitos desvios por parte dos governos dos países pobres. Como solução, Soros propõe a criação de um conselho internacional, formado por pessoas independentes, com a função de avaliar os projetos viáveis em todo o mundo e acompanhar a sua realização. Esse comitê funcionaria debaixo do guarda-chuva do FMI.
Segundo Soros, o Fundo já tem aprovada uma verba de US$ 27 bilhões que poderia ser usada para o combate à
pobreza, bastando apenas a ratificação pelo Congresso americano. Esses recursos seriam geridos pelo novo comitê e dedicados ao combate à Aids e outras doenças, além de programas específicos de erradicação da pobreza. Para evitar desmandos e desvios, os projetos contariam com a participação de instituições internacionais, como a Organização Mundial de Saúde e ONGs independentes. Se houvesse desvio, o comitê cortaria as verbas para determinados projetos ou países. Com esse sistema, os países ricos gastariam mais ? e melhor ? na ajuda às nações pobres. Para Soros, seria a maneira de os países ricos resgatarem os pobres. É dessa maneira que o novo Soros pretende resgatar o velho Soros e salvar o capitalismo internacional.