22/05/2002 - 7:00
Herança: Rogério, no Fasano e em dois momentos com o pai, Fabrizio, talento no sangue
O acento italianado no agradável conversar de Rogério Fasano denuncia sua origem, não a sua história. Ao ouvi-lo, não há quem diga que se trata de um membro da quarta geração da família de imigrantes que há cem anos cravou sua marca na gastronomia brasileira. Quem o vê à frente de sete dos mais sofisticados restaurantes de São Paulo, um pequeno império do requinte, talvez também não enxergue a trajetória de uma dinastia ímpar. Rogério é o legítimo herdeiro da tradição dos Fasano, inaugurada em 1902 por seu bisavô Vittorio ? e repetida, ingrediente por ingrediente, pelo avô, Ruggero, e o pai, Fabrizio. Esqueça a receita clássica de sucesso empresarial, em que o fundador passou o negócio para o filho, depois para o neto e assim por diante. Nessa saga, o legado deixado de um para outro foram a audácia, o espírito empreendedor, a perseverança e, principalmente, um sonho ? jamais um negócio próspero a ser ampliado. Cada um a seu tempo, os Fasano marcaram época no comando de templos gastronômicos e, em seguida, viveram a amarga sina de ter de fechar suas portas. Rogério, no ano do centenário do clã em terras paulistanas, também colocará uma tranca no imponente Fasano, sua faustosa versão das casas abertas em outras décadas por seus antepassados. Mas o faz em nome da redenção de todos, da realização do projeto que cruzou o Atlântico na bagagem do bisavô e ficou preservado na ambição das gerações seguintes: em novembro, ele inaugura o luxuoso Hotel Fasano, um empreendimento de R$ 40 milhões encravado no quadrilátero mais exclusivo da cidade. Um novo restaurante Fasano funcionará ali.
?O sonho de construir um hotel foi a única coisa passada de pai para filho?, conta Fabrizio Fasano ? seu pai, Ruggero, dizia que o complemento do bom restaurante era a boa hospedagem. O inventário da tradição familiar revela, no entanto, que há muito mais no pacote genético recebido que ele passou a Rogério. O que dizer, por exemplo, do sobrenome, uma valiosa marca em uma indústria crescente, a do consumo (e dos serviços) de altíssimo padrão? Além disso, é inata a cada Fasano a vocação para self-made man. Rogério ? a exemplo do pai, do avô e do bisavô ? ergueu seus negócios praticamente do zero. Hoje a refinada grife dos prazeres da mesa assina sete restaurantes ? como os badalados Parigi e Gero, além do sofisticado Fasano ?, comanda 420 funcionários e serve 30 mil refeições por mês. Há quatro anos, tem como parceiro João Paulo Diniz, herdeiro do Pão de Açúcar, a quem, de olho na expansão de seu império, vendeu uma participação acionária no grupo Fasano.
Tradição Vittorio: em 1920, com a equipe da Brasserie Paulista (à esq.) e Fabrizio e Rogério com o time do Fasano
O ofício de receber bem, da mesma forma, vem do berço. Corre nas veias dos Fasano desde que o patriarca Vittorio chegou ao Brasil em 1902. Ainda jovem, Vittorio deixou a Itália para cuidar dos negócios da família, que importava café brasileiro. Era um sujeito discreto, mas que adorava oferecer grandes jantares aos amigos. Decidiu estender isso ao público e montou um restaurante refinado, com um cardápio impecável e padrão europeu de atendimento. Surgia a Brasserie Paulista, na Praça Antônio Prado, marco de requinte do então elegante Centro de São Paulo. Era o primeiro restaurante com padrão Fasano de qualidade a ser eleito o melhor da cidade. Exatamente 100 anos depois, o mesmo padrão Fasano estará presente no hotel da família. Serão 22 andares, 54 apartamentos e nove suítes de absoluto bom gosto. Nas paredes externas, 50 mil tijolos ingleses feitos artesanalmente (o que dá o tom caramelo das construções londrinas). No piso do lobby, mármore italiano. As cadeiras do saguão vieram do interior da França. Rogério cuida pessoalmente de cada detalhe do hotel, que terá uma diária média de US$ 300. Logo na entrada do prédio, estarão duas das jóias da família, o restaurante Fasano e o charmoso bar Baretto (eleito pela revista inglesa Wallpaper um dos 20 lugares mais agradáveis do mundo). O projeto do hotel, assinado por Isay Weinfeld, é ousado. Não haverá, por exemplo, recepção logo na entrada. Em seu lugar surge um imponente bar. ?É uma tendência dos grandes hotéis como o Four Seasons de Milão e o Royalton, de Nova York, projetado pelo designer Philippe Starck?, conta Rogério. Para tornar o ambiente agradável aos freqüentadores dos restaurantes e bares do saguão, a recepção fica na parte de trás do lobby. Aquele trança-trança de malas e carrinhos de bagagem, nem pensar. Haverá uma passagem pela lateral do hotel. ?A idéia é atender com a mesma qualidade tanto o hóspede quanto o cliente que vai tomar um drink no Baretto?, explica Rogério.
O mesmo cuidado com os detalhes marcou a construção do restaurante Fasano. Quando decidiu erguer um palacete luxuoso em estilo clássico na área mais nobre da cidade, Rogério ? sempre com o aval do pai, Fabrizio ? escolheu o mosaico de mármore do piso, o mogno que reveste de forma impecável as paredes e os sóbrios móveis do ambiente. A obra durou quatro anos. Certa madrugada, quando a construção estava na fase final de acabamento, Rogério parou seu carro em frente ao palazzo e pensou por alguns segundos: ?Não quero mais que fique pronto.? Era medo, admite. Tinha, então, 27 anos e a missão de abrir o restaurante mais luxuoso da cidade com o brasão dos Fasano na porta. O apoio e a presença do pai foram fundamentais naquele momento. Fabrizio, um gentleman que sempre termina as frases com um sorriso acolhedor, já sabia como receber a nobreza, os artistas, os bem-nascidos. Trabalhara com o pai, Ruggero, na fase áurea do Jardim de Inverno do Fasano, na Avenida Paulista.
Ruggero, aliás, é grande responsável pela continuação da tradição da família no ramo. Quando seu pai, Vittorio, morreu em 1923 os filhos torraram toda a sua fortuna. A história terminaria ali caso não existisse o pequeno temporão, que estudava na célebre Escola de Moncalieri, instituição que formava os nobres italianos, em Turim. Anos mais tarde, Ruggero voltou ao Brasil e, com dinheiro emprestado, decidiu continuar do ponto em que o pai havia parado. Abriu vários restaurantes em São Paulo, inclusive o Jardim de Inverno, acompanhando o deslocamento do poder financeiro para a região da Avenida Paulista ? fiel à sina da família, perdeu tudo com a decadência imobiliária da região central da cidade.
Pioneiro: Vittorio (de terno, à esq.) na cozinha da Brasserie
É da fase áurea dessa época, porém, que Fabrizio mais se lembra. Ao lado do pai, na efervescência dos anos 50, o jovem Fabrizio recebeu o presidente americano Dwight Einsenhower e toda a nata de artistas internacionais da época, como Marlene Dietrich, Sara Vaughan e Nat King Cole, que faziam shows na boate do restaurante. O cantor americano foi responsável por um dos momentos mais marcantes do Fasano. O show estava previsto para a 1 hora da manhã. Cole chegou com duas horas de atraso e completamente bêbado. Ao ver 500 clientes batendo garfos e facas na mesa em protesto contra a demora de Cole, o coração de Ruggero não agüentou. Na manhã seguinte, ele sofreu um infarto, do qual se recuperou em pouco tempo. Para Fabrizio, porém, o grande dia foi a visita de Fidel Castro ao Jardim de Inverno. ?Ele se dirigiu até a cozinha e distribuiu charutos a todos os cozinheiros e garçons. Foi a pessoa mais carismática que conheci na vida?, lembra Fabrizio.
Em nome do pai: Rogério repete Fabrizio, que repetiu Ruggero, que repetiu Vittorio
Toda a saga do clã deve ter passado como num filme pela mente de Rogério naquela madrugada de 1990, em frente à sua ambiciosa e imponente criação, o Fasano da rua Hadock Lobo. Histórias de sucesso. Histórias de fracasso. Como a do pai, Fabrizio, que fez fortuna ao criar o uísque Old Eight e praticamente faliu no lançamento de outro uísque, o Brazilian Blend. Assim como o avô, assim como o pai, Rogerio estava apostando todas as suas fichas naquele Fasano. Ele próprio já havia sentido o gosto do fracasso. Aos 20 anos, abriu um restaurante francês no Shopping Eldorado. ?Foi um fiasco. Como é que um italiano vai se meter com a culinária francesa??, diz ele, enquanto suas mãos dançam de um lado para o outro.
Requinte: hotel Fasano terá tijolos ingleses, mármore italiano e móveis franceses
O Fasano era a sua revanche. ?No começo fomos muito criticados. Diziam que era ostentação. O Fasano abriu com pretensão e no Brasil é pecado ter pretensão?, diz Rogério. Após as críticas, vieram os aplausos que ecoam até os dias de hoje. Segundo ele, o investimento (cujo valor é guardado a sete chaves) é impagável. ?Jamais teremos todo o retorno do capital aportado?, afirma ele. Quem olha hoje para o grupo Fasano percebe que a aposta ambiciosa já foi recompensada. Quanto custa fazer uma marca ressurgir com o mesmo glamour do passado? Isso sim é impagável. Sob a batuta dos Fasano, as novas investidas continuam a todo vapor. Nos próximos dias, começam as obras da loja de vinhos, com bar à vin, em frente ao Parigi, na Avenida 9 de Julho, em São Paulo, e em dois meses será inaugurada a filial carioca do restaurante Gero, em Ipanema. No momento, a família estuda o que fazer com o palacete que abriga o Fasano até o hotel ficar pronto. Há duas opções. Ou eles passam o ponto (que lhes pertence por mais 20 anos) para alguma grife internacional ou embarcam em mais uma empreitada: o empório Fasano, uma luxuosa loja de iguarias e bebidas finas. ?Não há nada definido?, diz Rogério, com o mesmo brilho no olhar de Fabrizio, de Ruggero, de Vittorio: de quem não vê a hora de começar um novo projeto. ?Herdar um restaurante com 100 anos de história não teria a menor graça?, diz Rogério. ?Bom mesmo é começar tudo do zero.?
Fase áurea: os Fasano viveram momentos de glória na Brasserie Paulista (à esq.) e no Jardim de Inverno