08/06/2004 - 7:00
DINHEIRO ? O que o organismo oficial da ONU para o desenvolvimento recomenda ao governo brasileiro para a retomada do crescimento econômico?
RUBENS RICUPERO ? Baixar juros. Isso é fundamental. O governo deveria ter aproveitado o espaço que teve em janeiro para baixar. Deveríamos estar com uma taxa de um dígito. Esta é a taxa certa. Ainda nessa esteira, teríamos de depreciar o câmbio. Mas sem artificialidades ou intervenção. Baixando a taxa de juros, o câmbio responderia automaticamente. É um processo natural. Na minha opinião, ele deveria ficar algo em torno de R$ 3,10 e R$ 3,20. Sem invenções, teríamos ainda de procurar simplificar a incidência de impostos, aumentar a meta de inflação para algo em torno de 7%, reduzir a estrutura tributária e burocrática. Essa é a nossa receita de crescimento. O resto é balela. O Brasil deve se liberalizar na medida que possa. Mas se não tiver taxa de juros e taxa de câmbio, não haverá condições macroeconômicas para resistir ao impacto prematuro da liberalização.
DINHEIRO ? Metas de crescimento são saudáveis?
RICUPERO ? Se seguirmos a receita prescrita por nós, não vejo problemas. Mesmo que o Brasil cresça bem mais que 3% em 2004, ainda é muito pouco para as necessidades nacionais. Mas não se deve criar um otimismo excessivo. Pergunto-me se vamos ter condições de manter o crescimento durante muito tempo porque a taxa de investimento está muito baixa no Brasil. Em 2003, pela primeira vez em muitos anos, ela caiu a menos de 18% do PIB. No último ano do governo Sarney, em 1989, o Brasil investiu quase 27% do PIB, e este ano está investindo 17%, taxa muito baixa. A China investe 40%. Os outros asiáticos investem de 30% a 35%. Um crescimento econômico sustentável só se dá com uma taxa de investimento alta.
DINHEIRO ? O que poderia atrair esses investimentos?
RICUPERO ? É perigoso continuarmos dependendo de recursos estrangeiros. Além disso, a confiança do investidor estrangeiro está baixa no Brasil. Ela só vai ser recomposta quando acabarmos de fazer o ajuste e voltarmos a crescer. Para o investidor estrangeiro, o país que cresce é aquele onde eles põem dinheiro e apostam. A China e Índia, por exemplo, com todas as restrições que mantêm à entrada de capital externo, são os países que mais recebem investimentos. A China está com reserva cambial batendo em US$ 400 bilhões até o final deste ano. Eles controlam tudo rigorosamente, têm planejamento. Por isso digo que o investidor aposta em país que cresce. Se o país cresce e é responsável, tudo bem. Isso é o fundamental, não a taxa de juros alta. Esta só atrai capital de arbitragem. Esse só traz estrago, instabilidade e crise, e é totalmente desnecessário. É necessário capital para investimento produtivo, aquele que abre fábricas. E fábricas não voam de volta.
DINHEIRO ? Exportar é o que importa?
RICUPERO ? Penso que sim. No ano passado, o Brasil aumentou as exportações em 21%, quando o comércio internacional cresceu só 4,5%. Este ano, o comércio mun-
dial deve crescer 8,6% e, em 2005, 10,2%. Então, é provável que o Brasil continue crescendo. Com o crescimento do saldo comercial, o País terá condições de eliminar cada vez mais a dependência dos recursos de fora, até chegar a um ponto que eles se tornem tão pequenos que a conspiração dos mercados não terá muito peso.
DINHEIRO ? Como o sr. está avaliando o Brasil diante do atual quadro econômico internacional?
RICUPERO ? Esse é um momento particularmente difícil para o País. É um momento em que estamos na encruzilhada. Não crescemos há 20 anos e está na hora de fazermos uma reflexão. A Unctad é a esquerda das organizações internacionais. Somos contrários à dependência aos mercados estrangeiros. A aproximação entre países do hemisfério Sul é uma realidade. É a solidificação da nova geografia do comércio mundial. O comércio entre esses países não é uma alternativa, mas um complemento. Se existe alguém que é contra a nossa organização, não são os países do hemisfério Sul. Na ausência de uma arquitetura financeira desenvolvimentista, a única saída é nos concentrarmos em nós mesmos, enfatizando a oferta. A América Latina, em especial o Brasil, precisa entender que o liberalismo e a abertura comercial promovidos pela globalização não são garantias de sucesso econômico, muito menos de redução da pobreza.
DINHEIRO ? O Brasil está conduzindo bem os tabuleiros das negociações comerciais internacionais?
RICUPERO ? O comércio está em um momento paradoxal. As negociações que não estão paralisadas estão agarradas a interesses protecionistas. O Brasil tem de se livrar dessas amarras. Ser membro dos fóruns mundiais é importante, mas não é indispensável. Fundamental é ter oferta, ou seja, preço, qualidade e quantidade. Nos anos 70 as declarações eram ideológicas, abstratas. Hoje, são posturas mais concre-
tas, factíveis, como a abolição de subsídios e a discussão da retirada de barreiras comerciais. O caminho parece ser o de uma coerência global. Mas isso não significa que não veremos cada vez mais disputas por mercados. A OMC está cercada disso. As recentes vitórias do Brasil, como a do algodão, mostram esse panorama. Ganha-
mos por um lado, mas certamente sofreremos pressões por termos dado esse passo.
DINHEIRO ? Que tipo de pressões?
RICUPERO ? Os Estados Unidos têm essa posição unilateral de que se você não concorda com as suas vontades, então está contra eles. Podemos sentir essas pressões na própria negociação para a Alca.
DINHEIRO ? O acordo está ficando muito difícil?
RICUPERO ? A obsessão com a Alca é um exagero do Brasil. A negociação é importante, mas limitada. O acordo de livre comércio garante vantagens, mas não a primazia. A China é um exemplo disso. Não adotou os preceitos do liberalismo e mesmo assim está colhendo frutos. Ela e os Estados Unidos são os que têm levado o comércio internacional adiante. O presidente Lula foi lá porque se deu conta disso. Mais importante que se ater a nego-
ciações comerciais, é diversificar a pauta de exportações. O Brasil não faz isso. Não é vergonha exportar commodities, mas não podemos ficar só nisso. De tudo o que a Austrália exporta, 60% são matérias-primas, mas ela compensa com investimentos em produtos não-dinâmicos, como eletroeletrônicos.
DINHEIRO ? Quais são as brechas concretas para conseguir um acordo este ano?
RICUPERO ? É muito difícil. Só se for um acordo mais modesto, onde não constem temas como propriedade intelectual e questões agrícolas. E sem dúvida alguma será mais seletivo com relação a acesso a mercados. O Brasil reclama demais porque os americanos impõem barreiras justamente em setores em que nós somos mais competitivos. É um sério problema de descontentamento permanente. Os produtos americanos não têm obstáculos. Eles são seletivamente protecionistas. A saída para isso é diversificar nossas exportações. Se eles taxam o nosso café, vamos passar para o café em grão, moído, torrado. Agora mesmo entramos em acordo sobre a questão do suco de laranja. É o início do começo do princípio.
DINHEIRO ? Dessa forma, o que seria melhor para o Brasil, George W. Bush ou John F. Kerry?
RICUPERO ? Não vejo diferença entre eles. O importante é que haja um governo que seja menos sensível aos lobbies em setores em que o Brasil é mais competitivo. Os dois possuem o mesmo velho estilo americano em lidar com o negócio internacional, como se não fossem questões vitais. O único problema que vejo é a manutenção da agenda de combate ao terrorismo. É uma agenda unidimensional. Esquecer da problemática da fome e do desenvolvimento mundial é típico dos americanos. Quem quer que seja eleito, que não deixe morrer para sempre a idéia da arquitetura econômica fundamentada no desenvolvimentismo.
DINHEIRO ? O governo do PT lhe parece antiamericanista?
RICUPERO ? Esse é um termo um pouco forte. O que há é um sentimento generalizado de restrições à política unilateralista do governo Bush. O cidadão daquele país foi muito trabalhado pela mídia e pelo governo. Tenho esperança que com o debate eleitoral haja alguma evolução.
DINHEIRO ? Em contrapartida ao impasse na Alca, a União Européia se mostra mais disposta a estabelecer um acordo com o Mercosul. É o caminho certo?
RICUPERO ? Vejo a briga interna entre os europeus sobre a questão dos subsídios e das barreiras e digo que não temos poder para influir nessa química. O acordo depen-
de dessas cotas. Qualquer que seja o acordo fechado, o Brasil sempre vai sofrer porque se fixa em uma pauta única. O Pascal Lamy (comissário europeu para o Comér-
cio) me disse que acha difícil fechar o acordo até outubro justamente por conta dessa fixação na pauta agrícola. Acho que após diversificar é que poderemos brigar por mais espaço. Uma negociação que poderá ampliar a ofer-
ta é a revitalização do sistema de preferências tarifárias, criado na década de 80. Pelo sistema, os 77 países em desenvolvimento que participam da Unctad poderiam re-
duzir barreiras entre si, sem estender os benefícios a outros países. É uma solução para alguns dos principais embates que vemos o Brasil travar.
DINHEIRO ? O sr. disse, certa vez, que se todas as barreiras tarifárias fossem retiradas, o Brasil não teria produtos suficientes para exportar. Qual é o problema?
RICUPERO ? As commodities sofrem de um sério problema que é o falta de dinamismo. Elas não acompanham o ritmo mundial. Cada vez mais, os países oferecem produtos com valor agregado porque sabem que as matérias-primas estão caindo no mercado internacional por conta do protecionismo. Se todas as barreiras fossem retiradas hoje, o Brasil não suportaria o aumento dessa demanda. Nossas indústrias de aço, papel e celulose estão batendo na capacidade instalada. Precisamos de investimento para aumentar esses setores, mas onde estão?
DINHEIRO ? O que esperar das negociações na OMC?
RICUPERO ? Pela primeira vez essa rodada se propôs a ser uma rodada do desenvolvimento, da liberalização agrícola e de limitação dos subsídios. Tudo leva a crer que a reunião da próxima semana será um sucesso. A própria conferência que estamos realizando será um termômetro disso. Teremos mais de vinte chefes de Estado presentes. O Supachai Panitchpakdi (diretor-geral da OMC) confirmou presença, o que é um bom sinal para que as negociações avancem. Ele está confiante em que se pode ampliar a quebra de barreiras agrícolas.