07/11/2014 - 20:00
Conheci Mário Covas em 1966, durante um encontro do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), em Criciúma, no sul de Santa Catarina. Uma das pernas do sistema bipartidário imposto um ano antes pela ditadura militar que apeou do poder o presidente João Goulart, visto por alguns setores como oposição consentida, o MDB representava, ao mesmo tempo, um instrumento de luta e de denúncia dos desmandos e da violência do regime. Deputado federal em primeiro mandato, pelo extinto PST, Covas chamou a atenção de todos os que lotavam o salão de festas de um clube local, não apenas pelo poderio de sua voz e por seu discurso vigoroso, mas pela clareza de ideias, pela intransigente defesa da liberdade e pela corajosa denúncia do arbítrio e da tortura, já amplamente em voga no País.
Cassado dois anos depois, com a edição do AI-5, Covas teve de abandonar compulsoriamente a vida pública. Em 1979, tendo recuperado seus direitos políticos, retomou a carreira, primeiro como prefeito nomeado da capital paulista, mais tarde sucessivamente como deputado federal, senador e governador do Estado de São Paulo, por duas vezes. Nessa trajetória, Covas foi um dos fundadores do PSDB, em 1988, partido inspirado na socialdemocracia europeia, com um viés de justiça social, de respeito aos direitos dos trabalhadores e preocupação com a distribuição de renda.
Entre os milhares de quadros que aderiram ao projeto tucano destacavam-se homens e mulheres que sabiam por experiência propria o que viver sob o tacão dos militares, como Fernando Henrique e Ruth Cardoso, Almino Afonso, Alberto Goldman, José Serra, Walter Barelli e muitos outros. Dono de uma inigualável folha de serviços prestados à causa democrática, Covas, falecido em 2001, seguramente estaria hoje condenando com veemência a recente manifestação de uma minoria desequilibrada que se exibiu na avenida Paulista, pedindo não apenas o impeachment da recém-reeleita presidenta Dilma Rousseff, como ostentando faixas e cartazes pedindo “Intervenção militar já”. Para esses grupelhos, a volta dos militares ao poder seria a solução para todas as mazelas nacionais. Não mais distante da realidade do que o legado daqueles 21 anos de terror.
Afora o atentado sistemático contra as liberdades, a cultura e o conhecimento, expresso cotidianamente das piores formas possíveis, não se pode esquecer que o último presidente militar, o general João Figueiredo, deixou ao País o que poderia chamar de herança maldita: uma inflação galopante, de nada menos de 28,7% anuais, ao final de seu mandato, em março de 1985, e uma dívida externa, que passou de US$ 43,5 bilhões, em 1978, para US$ 100 bilhões sete anos depois. Ao mesmo tempo, a despeito de pequenos avanços, a política social do regime esteve longe de ser um sucesso. Na metade dos anos 1980, a taxa de mortalidade infantil era de 87,8 (hoje está em 14) e 35% da população estava abaixo da linha de pobreza, índice que chegava a 49,1% nos Estados do Nordeste. Está claro ou é preciso desenhar?
Felizmente, os setores mais lúcidos do PSDB estão dissociando-se desse pessoal que, como o lixo arrastado por uma enchente, acabou juntando-se ao partido de Covas e de Aécio Neves, na disputa presidencial. Lideranças de prestígio do partido, como Goldman, Xico Graziano e Geraldo Alckmin, além do próprio Aécio, já reprovaram publicamente a tentação totalitária e afirmaram que não compactuam com o retrocesso. Eles sabem o quanto é duro viver sem liberdade e certamente não querem que a história se repita nem misturar suas biografias com o pessoal da treva. Entre eles e os Bolsonaros da vida, não há absolutamente nada em comum.