20/11/2023 - 11:30
Jovem palestina relata o drama pelo qual passou para deixar a Faixa de Gaza e retornar ao Brasil, onde mora. Ela teme pela família que ficou para trás.A jovem palestina Samira Hasan, 25 anos, e seu filho Hamza Abuharbid, 1 ano, visitavam a família na Faixa de Gaza quando começou o conflito entre o grupo palestino Hamas e Israel. Assustada, ela ligou para o marido, que estava em Florianópolis (SC), e disse: “Pode encontrar uma nova família para você. Nós vamos morrer aqui.” Naquele momento, Samira não sabia que, após uma jornada de medo e privações, ela e o filho estariam entre os 32 brasileiros e palestinos resgatados pelo Brasil na última semana.
Só quando cruzou a fronteira da Faixa de Gaza com o Egito, no dia 12 de novembro, um domingo, Samira sentiu-se segura. “Ao mesmo tempo, só pensava na minha família que tinha ficado para trás e que pode morrer a qualquer momento”, lembrou, durante entrevista à DW. O pai, a mãe e quatro irmãos continuam no território palestino – uma quinta irmã vive na Turquia.
Formada em Literatura Inglesa, Samira havia deixado Gaza em 2020 e migrado para a Turquia em busca de um lugar mais seguro para viver. Lá, casou-se com o também palestino Ahmed Abuharbid, 31 anos, mestre em Administração Hospitalar. Em julho de 2022, decidiram se mudar para Florianópolis, um lugar que consideram bonito e protegido.
Samira estava grávida de sete meses. Em setembro, Hamza nasceu, tornando-se, portanto, cidadão brasileiro. Apesar de ambos terem formação superior, ainda não são fluentes em português e tiveram que buscar alternativas como fontes de renda: ela faz bolos e tortas para uma cafeteria, e o marido trabalha como motorista de aplicativo.
Em julho deste, um ano após se mudar para o Brasil, Samira voltou a Gaza para visitar a família e apresentar o filho. Os pais e irmãos moravam em Rimal, bairro nobre ao norte da região. Foram dias alegres, com viagem à Turquia, refeições em restaurantes, passeios à beira-mar e a festa de aniversário de um ano de Hamza.
Até que, em 7 de outubro, um sábado, enquanto os avós brincavam com o neto na confortável sala de sua casa, o Hamas atacou Israel. O grupo fundamentalista islâmico, considerado uma organização terrorista por Israel, União Europeia, Estados Unidos e outros países ocidentais, assassinou ao menos 1.200 pessoas e levou outras 240 como reféns para dentro de Gaza. Israel reagiu primeiro com bombardeios e, há três semanas, com uma ampla incursão por terra.
Dias depois, um funcionário da embaixada brasileira ligou para Samira perguntando se ela e o filho queriam deixar a Faixa de Gaza, já que o menino é brasileiro. Ela não hesitou. “Meu pai disse: 'Não quero que você e seu filho morram aqui. Seu marido está esperando vocês no Brasil'.”
Medo e longa espera
No início do conflito, a família de Samira permaneceu em sua casa, em Rimal. Depois, foram para a residência de amigos, onde se sentiam mais seguros. A escolha se mostrou acertada. “Logo vimos nos jornais a casa dos meus pais destruída.” O bairro foi atingido pelos bombardeios de Israel e está em ruínas.
Na casa de amigos, ela passou pelo período mais tenso da jornada. “A todo instante escutávamos o som de mísseis e bombas. Nenhum lugar era seguro, nem hospitais, nem escolas”, lembrou. Toda vez que ouvia o barulho das bombas, Hamza se assustava: encolhia todo o corpo e colocava as mãos na frente do rosto, como se estivesse tentando se proteger.
Em 12 de outubro, o exército de Israel deu um ultimato para que os habitantes do norte migrassem para o sul, sugerindo que a região seria atacada. A família de Samira seguiu então até Khan Younis, cidade próxima à fronteira com o Egito. O percurso de 30 quilômetros costumava ser feito em 40 minutos. Mas dessa vez durou mais de duas horas. “As estradas estavam destruídas. Esperávamos que eles nos matassem a qualquer momento”, recorda. Depois que chegaram, o carro em que viajavam também foi destruído.
Eles se refugiaram em um acampamento em uma escola de Khan Younis, mesmo local onde estavam outros brasileiros. Alternavam dias no acampamento com dias na casa de amigos. Samira já não encontrava leite nem fraldas para o filho. E praticamente tudo o que tinham para comer era um biscoito industrializado de tâmaras. “Era nosso café da manhã, almoço e jantar”.
A partir de então, Samira ficou na expectativa pelo resgate do governo brasileiro. Mas até deixarem Gaza pela passagem de Rafah, houve outros momentos de muita tensão. Primeiro, receberam a informação de que iriam deixar o enclave na manhã seguinte. “Mas ninguém apareceu. Na segunda tentativa, fomos até a fronteira e ficamos 12 horas esperando, mas tivemos que voltar, pois a fronteira não abriu. Não comi nada, nem mesmo os biscoitos, pois queria deixar para meu filho.”
Só na terceira tentativa cruzaram a fronteira. Uma das lembranças mais marcantes de Samira foi sua primeira refeição completa depois de muito tempo. “Nós comemos peixe. Mas só conseguia pensar em todos que permaneciam em Gaza, principalmente minha família, que não tinham o que comer”.
Resgate da família
Samira frequenta o primeiro nível de um curso de português para estrangeiros na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Para conversar com a DW, levou um papel com anotações que não queria esquecer. “Primeiramente, quero agradecer ao presidente do Brasil, presidente Lula da Silva, à Força Aérea Brasileira e a todos que nos ajudaram a sair de Gaza. Meu filho e eu nos sentimos seguros aqui”, escreveu.
E frisou o que espera do governo brasileiro. “Todos em Gaza correm risco de morte. Tenho medo pela minha família. Espero que o Brasil possa resgatá-los. Não quero que eles morram.” As sensações contraditórias de alívio por estar a salvo e angústia pelos que ficaram em Gaza perpassa quase todas suas falas.
O Brasil está preparando uma nova lista de interessados em deixar o território palestino para apresentar a Israel e Egito, que precisam autorizar a saída de estrangeiros. Ainda é preciso, segundo o Itamaraty, verificar seus documentos e se cumprem os requisitos para cruzar a fronteira.
Enquanto isso, Samira está aflita porque não consegue se comunicar com a família desde que deixou Gaza. “Uma das coisas mais difíceis é não ter notícias da minha família, dos amigos. Não sei se estão vivos ou mortos. A única coisa que posso fazer é rezar.” Ela também não tem notícias da sua melhor amiga, Shorouq, a quem tentou ligar muitas vezes. Mas já sabe que alguns primos e uma amiga morreram no conflito: “A Viola era cristã e foi se refugiar em uma igreja, que acabou sendo bombardeada.”
Samira tem o visto de residência permanente e vai solicitar o passaporte brasileiro. Como o filho nasceu no Brasil, ela também tem direito à cidadania, desde que cumpra alguns requisitos: precisa estar vivendo no país há pelo menos um ano e ser aprovada em uma prova de português. Por enquanto, pretende permanecer em Florianópolis. Ela deseja muito retornar a Gaza. Mas só faria isso após a criação de um Estado palestino.
Desde que chegou em Florianópolis, Samira diz que mal consegue dormir, pois está sempre pensando na família e no conflito. “E quando durmo, tenho pesadelos com a guerra.” Ela chegou na capital catarinense em uma quarta-feira à tarde. Era 15 de outubro, feriado da Proclamação da República, com fortes chuvas caindo na cidade. “Até o barulho da chuva me lembra das bombas caindo.”