Aos 84 anos, o historiador Jair Krischke é o mais longevo caçador de torturadores da América do Sul. Há cinco décadas, ele mantém uma cruzada contra agentes da repressão das ditaduras que marcaram a vida política e social dos países do continente entre 1960 e 1980. Agora, o ativista gaúcho vive a expectativa do que pode ser sua última grande investida contra um grupo acusado de violações de direitos humanos.

Krischke se uniu ao ativista argentino Adolfo Pérez Esquivel, Nobel da Paz, para mover na Justiça do país vizinho um processo contra agentes da repressão suspeitos de ligação com o desaparecimento do jornalista paulista Edmur Péricles Camargo, conhecido como “Gauchão”, militante do PCB, no Aeroporto de Ezeiza, em junho de 1971.

Um diplomata e dois oficiais brasileiros são citados na denúncia. A ação é de novembro de 2021 e as primeiras deliberações judiciais são consideradas positivas. “A causa está andando bem. Talvez seja a última oportunidade de punir essa gente. Todos estão velhos, como eu”, afirmou Krischke, ao Estadão.

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É uma luta contra a impunidade. O gaúcho de voz grave e sotaque forte é um dos maiores nomes dos direitos humanos do Cone Sul. O reconhecimento se dá em função do trabalho que desempenha à frente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH).

Criado há mais de 40 anos, o movimento poupou inúmeras vidas de perseguidos políticos por ditaduras latino-americanas e denunciou um sem-número de agentes envolvidos na Operação Condor – um acordo clandestino entre as ditaduras de Brasil, Argentina, Chile, Uruguai, Bolívia e Paraguai, com o aval do governo dos Estados Unidos.

Krischke recebeu a reportagem no escritório do MJDH, que fica localizado no Edifício das Missões, em Porto Alegre. Ironicamente, o corte de gastos levou a entidade a uma sala que já foi usada pelo Serviço Nacional de Informações (SNI) na ditadura. A janela da sala principal tem vista privilegiada para a famosa Esquina Democrática, icônico espaço de manifestações políticas e culturais da capital gaúcha.

Interpretação

Ele avalia que as chances de punições no Brasil são nulas desde que o Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu que a anistia alcança os repressores e a Justiça não interpreta os crimes praticados por agentes do Estado como de lesa-humanidade. Nenhum torturador foi punido no Brasil desde o fim da ditadura militar, em 1985. Por isso a investida judicial no estrangeiro.

“A impunidade ficou chancelada pelo STF. No mês passado, a Justiça uruguaia mandou prender dois militares, 44 anos depois do episódio. É crime de lesa-humanidade, não prescreve. Mas a Justiça brasileira não interpreta assim, mesmo o País sendo signatário de convenções internacionais”, afirmou.

Antes de mover a ação com Esquivel, o brasileiro amargou uma derrota após 22 anos de trabalho. Corria o ano de 1999 quando Krischke depôs à Justiça da Itália pela primeira vez e apresentou informações sobre a Operação Condor – o historiador é um dos maiores especialistas sobre o tema.

Entre as vítimas, brasileiros com cidadania italiana, o que permitiria a tramitação de um processo no país europeu. Denunciou 12 militares e um delegado. “A sentença estava prevista para outubro de 2021. Em agosto morreu o último réu, o coronel Átila Rohrsetzer. Você não imagina a frustração que aquilo me deu. Foram 22 anos de trabalho. Me refiz do baque e iniciamos uma causa nova na Argentina”, contou.

Subordinação

Para o ativista, o Brasil sente os efeitos da falta de uma Justiça de transição adequada e da ausência de uma política pública de memória. Esses fatores, disse ele, contribuíram para a ascensão do bolsonarismo e não garantem segurança na subordinação dos militares ao poder civil.

“No Brasil não houve transição. Houve transação. Tancredo Neves era aceitável para os militares em 1961 (quando virou primeiro-ministro com a renúncia de Jânio Quadros). Foi de novo em 1985 (candidato à Presidência na eleição indireta). É uma grande negociação que vem vindo. Sarney aceitou, Collor, FHC e Lula aceitaram. E o Lula está aceitando de novo. Não entenderam que militar deve estar subordinado ao poder civil”, afirmou Krischke. “Os militares no Brasil até hoje só desocuparam a praça, mas continuam manobrando”, observou.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.