Houve um tempo em que a ante-sala da presidência da Transbrasil em São Paulo era tão barulhenta quanto o saguão do vizinho Aeroporto de Congonhas. Tempo em que políticos e empresários de todas as estirpes esparramavam-se nos dois sofazões de couro para saborear o famoso café expresso da casa. Falavam alto, riam e assistiam à televisão enquanto a secretária não os anunciava para a reunião com o manda-chuva do momento ? fosse ele o fundador da empresa, Omar Fontana, ou seu genro e sucessor Antonio Celso Cipriani. Mas as coisas mudaram um bocado desde o início da crise que começou a golpear a Transbrasil no ano passado e por fim a nocauteou em abril, quando a Justiça de São Paulo decretou a sua falência. Hoje não há mais expresso, não há mais secretária, não há mais manda-chuva. O silêncio pesa. E a estante da televisão virou altar. Sobre ele, ao lado de um copo com flores frescas, estão imagens de Santo Expedito, o dos desesperados, e de São Judas Tadeu, das causas impossíveis. É ali que um grupo de 30 últimos funcionários da companhia em São Paulo pratica o seu exercício diário de fé: implorar aos céus para que a Transbrasil volte a voar.

Mas haja prece. A situação daquela que foi uma das maiores companhias aéreas do País, dona de quase cem linhas nacionais e internacionais, é lastimável. No começo deste mês, venceu o prazo para que ela opere novamente ? a qualquer momento o Departamento de Aviação Civil pode cassar a sua concessão. As dívidas na praça chegam a R$ 1 bilhão. Onze de seus 14 aviões foram retomados por empresas de leasing, e os outros três, arrestados pela Justiça. Dos 5 mil funcionários, restam 400, que há seis meses não recebem sequer o contracheque. A maioria fica em casa esperando por um milagre e vivendo como pode. Mas há alguns ?teimosos? que continuam a dar expediente todos os dias, religiosamente das 8 às 17 horas. Trabalho para fazer não existe. Cartão de ponto não se marca mais. Hierarquia é uma abstração. Mas eles continuam lá. Por quê? ?Temos convicção de que tudo vai voltar ao normal em breve?, diz o chefe do departamento de reservas José Frota. Antes da bancarrota, Frota comandava 250 pessoas. Sobrou só ele, que passa as suas horas dentro da Transbrasil elaborando malhas aéreas fictícias. Toda semana ele faz uma diferente, definindo horários e aeronaves. ?Se voltarmos, ou melhor, quando voltarmos o meu setor estará pronto para operar em 24 horas?, garante.

 

A sala do chefe de reservas é hoje o local de maior movimento da empresa em São Paulo. O pessoal da manutenção sempre aparece para papear e tomar o café forte que o anfitrião passa na hora e mantém quente na garrafa térmica trazida de casa. Um dos maiores habitués é o supervisor de manutenção Edson Luiz Bortoletto. Quando não está por ali jogando conversa fora, ele está no pátio debruçado sobre o motor do carro de algum colega. ?Mecânico é mecânico?, diz. Bortoletto também vai uma vez por semana ao galpão onde trabalhava e liga todos os equipamentos na tomada. ?Mesmo que não estejam sendo usados, eles precisam funcionar. Senão estragam?, explica. A cena é melancólica e chega a arrancar lágrimas do experiente funcionário, que tem 27 anos de Transbrasil e hoje sobrevive com o dinheiro emprestado por parentes. ?O mais doloroso mesmo é ir embora no final do dia e olhar para aquela placa?, conta Bortoletto, apontando para um letreiro enorme pregado na parede e no qual se lê ?Quem faz a Transbrasil decolar somos todos nós?.

O prédio da administração é o retrato sem retoques da agonia de uma empresa falida. Do lado de fora, na vaga antes ocupada pelo reluzente Mercedes do ex-presidente Cipriani está o Corcel 76 do assessor de imprensa Carlos Badra. No saguão, o mármore da mesa da recepcionista é pura poeira. O elevador está parado há meses. E a maioria das salas, fechada à chave, com as luzes apagadas e um mar de computadores desativados. Sinal de vida, apenas no escritório do gerente de aeroportos e serviços de bordo Wilson Rossi Jr. Com vista para a cabeceira da pista do Aeroporto de Congonhas e um quadro de Santos Dumont na parede, é dali que ele sonha em chefiar novamente os seus 600 comissários de bordo. Hoje, seu trabalho se resume a atender gente que deixou a empresa e deseja voltar. ?Nós pagávamos os melhores salários do mercado?, afirma Rossi. ?Olha só quantas aeromoças já empregadas em outras companhias e que querem voltar a trabalhar com a gente?, diz, brandindo um calhamaço de currículos. Rossi tem 41 anos e está há 24 na Transbrasil. Nesse tempo, comprou apartamento, casa na praia, terreno para o sítio… Hoje, nem o lixo de sua sala é recolhido. Os papéis transbordam do cestinho. ?Venho para cá e fico procurando o que fazer. Já reescrevi duas vezes o planejamento anual que eu mesmo fiz.?

 

A situação do local só não é pior por causa da Target, empresa de táxi aéreo e manutenção de jatos executivos que o ex-presidente Cipriani é acusado de ter montado com dinheiro desviado da Transbrasil. É a Target que garante o fornecimento de água e luz ao prédio, já que também está instalada nele. Em troca, ocupa os dois hangares da Transbrasil em Congonhas. Diz-se que paga aluguel por eles, mas ninguém jamais viu o dinheiro. De todo modo, os hangares estão cheios de aeronaves e mecânicos trabalhando. O movimento de passageiros também é intenso. Por um momento, o cenário chega a lembrar os bons tempos da Transbrasil, cuja logomarca está pintada por todos os lados. Mas não demora muito para a ficha cair, pois a vida real da companhia do arco-íris está logo ali fora. Para dar espaço à Target, dois aviões Brasília da Transbrasil foram colocados ao relento e estão imundos, castigados pela chuva. Um deles nem turbina tem mais. Onde ela está? ?Presa numa firma de manutenção externa que aguarda para ser paga?, conta um funcionário.

Retomada. Quem tenta pilotar a Transbrasil hoje é o comandante Sérgio Borges da Costa. Ele é presidente da Fundação Transbrasil, que tinha 17% das ações da empresa e recentemente recebeu outros 54%, doados pela família Fontana. No momento, Costa se divide entre legalizar na Justiça o controle acionário que a Fundação passou a ter e correr atrás de investidores dispostos a salvar a Transbrasil. Aposentado pela empresa depois de 24 anos e 18 mil horas de vôo, ele concentra a esperança das 2,5 mil famílias de funcionários demitidos e ansiosos para voltar ao batente. Costa jura estar em fase avançada de negociações com um grupo estrangeiro que injetará US$ 500 milhões na Transbrasil até o final do ano. O nome e a nacionalidade dos donos do dinheiro ele não revela. ?Mas pode escrever aí: estaremos no ar antes de dezembro?, diz. Se isso acontecer, Costa já tem traçado o futuro plano de vôo da companhia: reestruturação dos cargos e salários, participação nos lucros para os empregados, redução das linhas e atenção especial para o setor de transporte de carga. Enquanto isso não sai do papel, o comandante treina. Sem secretária, computador ou telefone, ele já se aboletou na sala da presidência. Até pendurou fotografias suas na parede. Só se recusa a usar a mesa que o cargo lhe conferiria. ?Conheço um candidato que se sentou na cadeira de prefeito antes da hora e perdeu a eleição. Melhor não dar sopa para o azar?, explica, lembrando do fato que marcou a biografia do presidente Fernando Henrique Cardoso em 1985.

Os funcionários renanescentes se agarram com fé aos planos do comandante Costa. Ninguém desanima ? mas também não se anima. A regra é manter a calma e esperar. Exceção feita à telefonista Auxiliadora das Graças Leite, de 45 anos. Ela talvez seja a única que ainda consegue manter o alto-astral. Até um mês atrás, a sorridente Auxiliadora tinha trabalho. ?Muita gente ligava querendo fazer reserva?, conta ela, sentada junto ao seu hoje inoperante sistema de PABX. Nos bons tempos, Auxiliadora atendia mais de 200 telefonemas por hora. Hoje, com as linhas cortadas por falta de pagamento, ela quebra o galho no refeitório. ?Dobro guardanapos, tempero a salada?, conta. Mas como isso não toma muito do seu tempo, ela mata as horas no pátio, onde conversa com alguns colegas que aparecem só na hora do almoço (muitos com os filhos) para comer de graça. ?Meu primeiro emprego foi aqui, 25 anos atrás. Fiz a minha vida nessa empresa. Comecei na cozinha e sonhava ser telefonista. Consegui. Agora não vejo a hora de pegar o telefone de novo para dizer ?Transbrasil, bom dia?.?