DINHEIRO ? O senhor tem dito que o governo brasileiro sofre de um desvio ideológico chamado mercadismo. O que é isso?
ANTÔNIO DELFIM NETO ? Mercadismo é a crença que se apropriou dos economistas do governo de que o Estado, em qualquer circunstância, é uma tragédia. Que se o Estado não existisse o mercado resolveria tudo. Eles acreditam que o mercado é um instrumento divino que os brasileiros têm usado muito mal, porque de vez em quando tentam controlá-lo com o Estado. É também a idéia de que o patrimônio público pode ser vendido rapidamente, porque, não importa o prejuízo que você cause no curto prazo, no longo prazo as vantagens serão infinitas. Se dependesse da rapaziada que está na Fazenda, você teria privatizado até a Casa da Moeda, objetivo final de todo o sujeito que tem paixão mercadista.

DINHEIRO ? Mas o mercado não é a força mais importante da economia?
DELFIM ? Na verdade, o mercado é o grande instrumento de alocação de fatores de maneira eficiente, mas ele não toma conhecimento da distribuição. Karl Marx e John Stuart Mill já sabiam que a distribuição é um problema político. A economia termina na produção. Hoje, nós sabemos que é preciso acompanhar o crescimento com uma política deliberada de redução da pobreza, mas isso não é o mercado que vai fazer. No Brasil se cuidou sempre da eficiência produtiva e muito pouco da justiça distributiva.

DINHEIRO ? Isso é uma autocrítica, deputado?
DELFIM ? Evidente. Nós também somos culpados por esse processo. Mas ao meu tempo não era por paixão ao mercadismo, mas por incompetência de fazer diferente. Agora é um objetivo buscado. Mas isso que está aí só funciona na teoria econômica. Quando você traz a economia política para a arena política, a coisa muda, porque a economia política é a teoria econômica mais a urna. Se no modelo dos economistas você introduzir a urna, ele dá uma melhorada enorme. O mercado nos seus exageros é corrigido pela urna, e a urna, nas suas extravagâncias, é corrigida pela mercado. Nesse processo você vai caminhando para uma sociedade aturável.

DINHEIRO ? Mas as pesquisas do IBGE mostram que continuamos a ser um país muito desigual, apesar das eleições.
DELFIM ? É verdade, mas o índice Gini de desigualdade mede distância entre as pessoas, não bem-estar. Suponha dois sujeitos numa ilha: um colhe 300 cocos por ano, outro colhe 100. Os dois comem cocada até cansar, mas são diferentes. No segundo ano, o que colhia 300 passou a colher 600 cocos, e o que colhia 100 passou a 150 ? os dois melhoraram mas, se você calcular o índice de Gini, a situação piorou dramaticamente.

DINHEIRO ? O senhor está dizendo que a pobreza diminuiu e as estatísticas não estão captando?
DELFIM ? É muito mas grave do que isso. Quando você empobrece todo mundo, não há razão para o Gini melhorar. O que aconteceu é que o Brasil cresceu muito pouco nesses últimos anos. No governo Fernando Henrique, o crescimento médio foi de 2,2% do PIB. Per capita, ficou em torno de 0,7% ou 0,8%. É um crescimento imperceptível. Houve empobrecimento no Brasil porque, ao se fazer o ajuste reduzindo o ritmo de crescimento, se aumentou dramaticamente o índice de desemprego. Isso é muito visível em São Paulo. As pessoas estão morando na rua. No campo, quando se destruiu a agricultura familiar pela elevação cambial, as pessoas vieram para as cidades. O sentimento de que a pobreza cresceu é legítimo.

DINHEIRO ? O pessoal do Banco Central está na turma que quer privatizar a Casa da Moeda?
DELFIM ? Claro. São todos formados pela mesma escola. Eles vendem ideologia como boa ciência econômica e têm sucesso porque contam com suporte na mídia. É uma concepção do mundo: de que o mercado, em qualquer circunstância, é melhor do que qualquer ação do governo.

DINHEIRO ? A política monetária do Banco Central reflete essa concepção?
DELFIM ? A política monetária do BC reflete o que há de mais moderno em matéria de política monetária. Meta inflacionária e câmbio flutuantes são usados no mundo inteiro e têm funcionado bem. Quando o Brasil mudou a política econômica em 1999, a mudança foi radical. O surpreendente é que tenham continuado no governo as mesmas pessoas, porque foi uma mudança de 180 graus.

DINHEIRO ? Mas essas pessoas conduziram um política bem- sucedida…
DELFIM ? Em termos. Os quatro anos do real produziram, sim, uma estabilização, mas com custos sociais gigantescos, com uma acumulação de dívidas absolutamente incrível, que deixou uma carga gigantesca a ser levada pela sociedade: dívida pública, dívida externa, déficit em conta corrente, destruição do setor exportador. Tudo isso está sendo reconstruído. O fantástico é que o governo diga que só e responsável pela melhoria, não pelo estrago.

DINHEIRO ? É essa herança que hoje nos impede de crescer mais do que 4% ao ano?
DELFIM ? A única restrição ao crescimento é o financiamento do déficit em conta corrente. O Brasil valorizou o câmbio e depois fez sem cuidado uma redução tarifária. A combinação desses dois fatores aumentou dramaticamente a penetração das importações na produção nacional, em particular a produção exportadora. Logo, quando se aumentam as exportações aumentam, implicitamente, as importações. O Brasil tem o seguinte problema: se crescer 5%, terá um déficit de conta corrente de US$ 32 bilhões de dólares, dificilmente financiável.

DINHEIRO ? É isso que explica a recente elevação dos juros do BC?
DELFIM ? Quando o Banco Central agiu, acenou com a ameaça de inflação, mas na verdade estava querendo diminuir o ritmo de crescimento, para aliviar a balança e diminuir a pressão sobre o câmbio. Mas ele não pode confessar isso, porque supostamente está preocupado apenas com as metas inflacionárias. Essa medida vai aumentar a credibilidade do Banco Central, porque foi contra a maré. O presidente Fernando Henrique está tentando pôr em fase o ciclo político e o ciclo econômico, para ter uma aterrissagem gloriosa no segundo semestre de 2002. O Armínio Fraga tomou uma medida que torna essa aterrissagem menos gloriosa.

DINHEIRO ? O que distingue o Armínio Fraga de seus antecessores?
DELFIM ? Ele foi responsável pelo estabelecimento da política de câmbio flexível, mas é bom dizer que não foi o governo quem mudou a política cambial. Ela foi mudada pelos fatos. Por quatro anos, o governo fez todas as artes possíveis, baseado na hipótese de que sempre haveria, lá fora, um número de idiotas suficiente para financiar qualquer déficit. Um dia, claro, isso explodiu.

DINHEIRO ? O senhor tem alguma solução para esse gargalo externo da economia?
DELFIM ? A única saída é aumentar as exportações. É preciso dar apoio à exportações pra valer. Precisamos de um robustíssimo crescimento exportador. É com isso que deveríamos estar preocupados. Temos de produzir de novo um superávit comercial de US$ 10 bilhões, porque o déficit em conta corrente depende, essencialmente, de uma melhoria do déficit comercial. O resto dos gastos externos vai continuar crescendo porque o endividamento é crescente.

DINHEIRO ? Há pessoas que dizem que o esses superávits de US$ 10 bilhões não irão voltar porque a economia brasileira e a estrutura do comércio mundial mudaram…
DELFIM ? Conheço isso. As pessoas acham que é impossível e não fazem. Na década de 60 se dizia que não adiantava mexer no câmbio porque as exportações eram inelásticas. Pois nós mexemos no câmbio e fizemos as exportações crescerem 12% ao ano por dez anos seguidos, mantendo câmbio real e dando crédito. O Brasil hoje é um país sem crédito. A relação entre o crédito do setor privado e o PIB é de 30%, quando no passado era de 70%.

DINHEIRO ? Mas hoje existe a OMC, que impede o governo de ajudar os exportadores.
DELFIM ? Isso não é assim. Veja o caso do Vietnã. Por não ter estudado em livros americanos, os vietnamitas não sabiam que não podiam exportar e que existia a OMC. Resultado: em dez anos o Vietnã se transformou no segundo exportador mundial de café. Se você perguntasse a um economista brasileiro, ele diria que aquilo que o Vietnã fez não é possível. Na verdade, só é possível para quem não leu os livros americanos. O problema é o condicionamento ideológico. É claro que a OMC existe e protege os fortes, é claro que ela é manipulada. Mas veja a China: em 1984 ela exportava menos do que o Brasil e hoje exporta quatro vezes o que o Brasil exporta. Também os chineses não estudaram em livros americanos.

DINHEIRO ? Não é uma ironia que o senhor faça esse tipo de crítica a um governo que tem em seus quadros gente como Pedro Malan, que o criticava da mesma forma no passado?
DELFIM ? Ele era muito melhor quando falava mal de mim. Se você ler as críticas que o Malan fazia aos acordos com o Fundo Monetário Internacional, eram encantadoras. Hoje, ele é um auditor terceirizado do Fundo. É competente economista, tem muitas qualidades, mas antes eu o achava muito melhor. Só não fazia o que ele mandava porque não podia.

DINHEIRO ? E a Alca, deputado: é impossível ficar de fora?
DELFIM ? Não vai ser muito fácil ficar fora, mas também não acho que seja inexorável participar. Parte-se de uma idéia falsa de que qualquer área de livre comércio é boa. Os Estados Unidos têm um sentido paternalístico, protecionista em relação à América Latina. Isso está explícito na Doutrina Monroe. Esse sentimento generoso de proteger o quintal, de não deixar que outro galo entre aqui, não está mudando. Ou você acha que o FED quer saber o que acontece no Brasil antes de decidir os juros nos Estados Unidos? Acho tudo isso um sonho. Vamos supor que fosse rigorosamente impossível não fazer parte da Alca. Mas mesmo que se entre algemado, com camisa-de-força, tem de se entrar negociando. O Itamaraty empurrou esse assunto com a barriga por muito tempo, mas agora está tomando consciência. O Congresso vai se meter nisso e temos de atrair a Academia e o empresariado. É ele quem lhe dá os fatos. No Brasil, a opinião do empresário é considerada burra e impatriótica porque ele só defende interesses próprios. Nos Estados Unidos, sabe-se que a soma dos interesses próprios é o interesse americano.