02/12/2025 - 13:13
Delito inclui desamparo físico, material e afetivo. Denúncias subiram 26% de 2023 a 2024. Ao mesmo tempo, penas ficaram mais severas este ano.Marta* tinha 71 anos quando foi internada em um hospital de Osasco, na Grande São Paulo. O marido a acompanhou por alguns dias, até que deixou de visitar a esposa que não apresentava melhoras e continuava hospitalizada.
Após algumas semanas, a agente social Meliana Emiliano ficou preocupada e, com apoio legal, buscou o companheiro na moradia dos dois. “Ele estava lindo e maravilhoso, vivendo muito bem com a aposentadoria da esposa, sem ir visitá-la; quando pedimos à Justiça que a aposentadoria fosse destinada ao cuidado dela, aí, ele voltou a frequentar o hospital”, narra.
A história de Marta* integra as mais recentes estatísticas do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, que registrou aumento no número de denúncias de abandono de pessoas idosas nos últimos anos. Em 2024, de acordo com o painel de dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos do órgão, elas cresceram mais de 26% em relação ao ano anterior: passaram para 62.688, ante 49.749 denúncias em 2023. Até o fim de novembro de 2025, as denúncias de violação da integridade física por meio de abandono somavam 60.271.
A curva ascendente chama atenção num momento de alteração da pirâmide etária brasileira: segundo dados do último Censo de 2022, a população com mais de 60 anos cresceu 56% em relação a 2010, ultrapassando 32,1 milhões – o equivalente a quase 16% da população contabilizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) naquele ano.
O que configura abandono de uma pessoa idosa?
Para o Secretário Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa, Alexandre da Silva, o abandono não se limita à ausência total de amparo – e se manifesta, muitas vezes, como negligência material e afetiva. “Como quando se oferece apenas um mínimo de comida, não há troca de afeto, e compromete-se a qualidade de vida digna”, explica, em entrevista à DW.
Este cenário pode ser agravado pela situação financeira de familiares. Mesmo sem intenção, eles podem não conseguir suprir as necessidades dos idosos, colocando-os em risco por não ‘darem conta’ das múltiplas demandas oriundas do envelhecimento .
Silva também aponta que a maior parte dos casos de abandono está ligada a desafios socioeconômicos. Neste contexto, o abandono de idosos não é apenas familiar. Ele acontece também pela comunidade e pelo Estado, quando este não é capaz de dar a assistência adequada para manter os idosos em condições mínimas de dignidade.
Outros fatores também influenciam o cenário de abandono no âmbito nacional, segundo o secretário: o aumento da expectativa de vida da população, a queda da fecundidade , a redução da família como extensão de laços afetivos, com menos integrantes para oferecer apoio; e a entrada das mulheres no mercado de trabalho. Como a carga do cuidado ainda recai majoritariamente sobre elas , o movimento tem como efeito a redução de pessoas disponíveis para cuidar dos idosos em tempo integral.
Qualquer pessoa – um vizinho, um amigo – pode denunciar anonimamente uma situação de abandono. As denúncias podem ser feitas nos conselhos municipais e estaduais da pessoa idosa ou pelo telefone do Disque Direitos Humanos: o número é 100.
Boa parte das denúncias é apurada pelo Ministério Público (MP), responsável junto ao serviço social e à Defensoria Pública por garantir a integridade desta população quando o abandono se torna mais crítico.
“Deixar o idoso à própria sorte, sem amparo, atenção e cuidado pode ser caracterizado como crime; se uma pessoa idosa tem filhos e estes têm capacidade [de cuidar], eles podem ser processados; e, se houver indícios de abandono mesmo, negligência e [de] intencionalmente não contribuir, podem mesmo ser acionados por abandono”, explica Maria Alzira Alvarenga, promotora de Justiça de São Paulo e coordenadora do centro de apoio à Pessoa Idosa do Ministério Público de São Paulo (MPSP).
Ela distingue que, embora se confundam, o “desamparo” pode ser decorrente da falta de condições econômicas da família ou da cognição comprometida do idoso, enquanto o “abandono total” é uma atitude dolosa e proposital da família, que não quer saber do idoso.
Amanda Lourenço dá outro exemplo. Ela é uma das agentes sociais responsáveis pelo cuidado dos idosos que procuram o Creci (Centro de referência do Idoso) no centro de São Paulo. Com programação de segunda a sexta-feira das 9 às 18h, cerca de 550 idosos com mais de 60 anos procuram o centro quase diariamente em busca de interação social e suporte. Um público que vem aumentando com o envelhecimento da população e que expõe a sua vulnerabilidade.
“Temos uma comunidade de idosos muito ativos , e por isso é raro o abandono físico, daquele idoso mais debilitado; mas é em certo ponto comum [termos] os casos de abandono afetivo, psicológico ou mesmo financeiro, com uso do dinheiro do idoso sem sua permissão”, exemplifica.
Penas maiores
A lei 15.163, sancionada em julho deste ano, aumenta a pena de alguns crimes praticados contra pessoa incapaz, idosa e com deficiência, entre outros dispositivos. “No caso do idoso, ela aumenta as penas do crime de expor a perigo a integridade, a saúde física ou psíquica da pessoa, e também aumenta as penas previstas no Código Penal para crimes de abandono de incapaz e maus-tratos”, explica a promotora.
O Art. 99 do Estatuto da Pessoa Idosa (Lei 10.741/2003), por exemplo, teve as penas de detenção alteradas para reclusão de dois a cinco anos. Antes, a pena era de dois meses a um ano de reclusão por “expor a perigo a integridade e a saúde, física ou psíquica, da pessoa idosa, submetendo-a a condições desumanas ou degradantes ou privando-a de alimentos e cuidados indispensáveis, quando obrigado a fazê-lo, ou sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado”.
Quais são os direitos da pessoa idosa?
O Estatuto estabelece que “é obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do poder público assegurar à pessoa idosa (…) o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária”.
O texto completou 22 anos no começo de outubro. Entre seus 118 artigos, garante o direito ao alimento por parte de familiares. Esse direito pode ser exigido por lei.
Presidente da Comissão dos Direitos da Pessoa Idosa da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil), João Paulo Iotti explica que este dever é semelhante àquele em que os pais têm de fornecer alimentos aos filhos. “Este é um tipo de abandono material que pode incluir a negligência, e ela é perigosa porque em última instância pode levar até mesmo à morte”, alerta o advogado.
Ele defende que as políticas públicas, além do amparo direto à população idosa, se concentrem na maior educação quanto aos direitos e deveres de familiares, idosos e comunidade, contando até mesmo com ensino em escolas sobre o envelhecimento .
“Por vezes, o idoso em abandono ou indigência não sabe sequer estar nesta condição porque as violações ocorrem geralmente dentro do próprio nicho familiar, que também não tem consciência, e aí [o crime] é agravado pela negligência ou omissão do poder público”, constata.
*Nome fictício
