DINHEIRO – A informalidade vai acabar no Brasil?
PEDRO MARREY JR. Acabar, não. Ela existe em todo o mundo. Mas no Brasil a redução nesse campo é uma daquelas boas notícias que poucos percebem. Há uma clara tendência de as empresas e de as pessoas físicas deixarem de atuar na clandestinidade. Hoje, já não vale a pena correr esse tipo de risco. Os fatores que levavam a esse comportamento se esgotaram nos últimos anos.

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“O confisco do Plano Collor estimulou o envio de dinheiro para fora” Fernando Collor de Mello, ex-presidente da República

DINHEIRO – O que provocou essa mudança?
MARREY JR. Foi uma conjunção de fatores, que vão da Entrevista / Pedro Marrey Jr. estabilidade monetária dos últimos anos aos atentados de 11 de setembro de 2001. Mas, se eu tivesse que eleger um ponto inicial desse processo, eu diria que o Plano Real foi o começo de tudo. Até aquela data, dois fatores motivavam as pessoas a cair na informalidade e na ilegalidade. Um deles era a inflação galopante. Havia quem falasse que estávamos caminhando para a Alemanha dos anos 20, quando as pessoas recebiam o salário diariamente e corriam para fazer as compras porque, caso contrário, o dinheiro se desvalorizava. Então, havia empresários que ganhavam o dinheiro legalmente e o remetiam para o Exterior, ou seja, esfriavam um dinheiro que era legal. Nessa época todos tinham uma espécie de personal doleiro, o seu doleiro pessoal. Era uma forma de preservar o valor do capital. Outro fator era a insegurança em relação aos planos econômicos. A qualquer momento, vinha um pacote de medidas que provocava um aumento brutal de impostos ou até confiscos, como ocorreu no primeiro dia do governo de Fernando Collor de Mello. Não pagar os impostos era uma forma de preservar o valor do dinheiro. Quando o presidente Fernando Henrique Cardoso veio a público e garantiu que não haveria mais surpresas na condução da economia, empresas e empresários começaram a mudar a forma de ver as coisas.

DINHEIRO – Faltava só uma promessa?
MARREY JR.Faltava a promessa acompanhada de ações práticas. Com o correr do tempo, todos viram que pacotes econômicos eram coisa do passado. Houve também uma mudança forte na forma como a Receita Federal passou a se comportar.

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DINHEIRO – O sr. se refere ao aperto na fiscalização?
MARREY JR. Não só. Tanto a Receita Federal como o governo em geral começaram a ser mais cuidadosos na hora de promulgar leis e baixar portarias e decretos. Antes era uma festa. Certa vez, quando o Francisco Dornelles era o secretário da Receita Federal, houve uma enchente terrível em Santa Catarina. O Delfim Netto, então ministro da Fazenda, o chamou e disse: “Preciso de recursos para enfrentar essa situação. Vamos criar um imposto compulsório.” O Dornelles rebateu que isso exigiria a aprovação de uma lei no Congresso Nacional. O Delfim respondeu: “Baixa uma portaria.” Felizmente, o Dornelles, antes de acatar a decisão, reuniu um grupo de advogados tributaristas em São Paulo e pediu sugestão de como evitar a previsível enxurrada de ações na Justiça contra aquele imposto. Eu estava presente à reunião. Dissemos para, pelo menos, ele fazer um decreto- lei. Essa história dá uma idéia da forma como as coisas aconteciam.

DINHEIRO – Essa “festa” acabou?
MARREY JR.De certa forma, sim. Antigamente, nos últimos dias do ano, montávamos um plantão em nosso escritório porque sabíamos que ali pelo dia 20 ou 22 de dezembro viria um pacote de impostos que passariam a valer a partir do dia 1o de janeiro. Então, tínhamos que preparar tudo para nossos clientes antes que o novo ano começasse. Era uma correria. Anos atrás, preparávamos até 50 liminares por semana para nossos clientes contra medidas fiscais inconstitucionais. Hoje, isso praticamente não acontece mais.

DINHEIRO – Por quê?
MARREY JR.Temos que admitir que o Everardo Maciel foi responsável por grande parte dessa mudança. Ele profissionalizou a Receita Federal e definiu uma política mais sensata quanto à fiscalização. Como a estrutura de fiscalização não era grande e o número de fiscais era reduzido, ele resolveu colocar o foco em cima das grandes empresas. Primeiro, porque elas eram as grandes contribuintes. Segundo, porque elas obrigavam os fornecedores a entrar na legalidade. O efeito multiplicador era enorme. Por que você vai fiscalizar a padaria da esquina que vende pãezinhos para a vizinhança? São milhares de pequenas padarias em todo o País. O melhor é fiscalizar o moinho de trigo que fornece para elas. Ou o fabricante de máquinas de panificação. É mais efetivo.

DINHEIRO – Mas a Receita não cria regras em demasia? Isso não prejudica o ambiente para os negócios?
MARREY JR. – Às vezes, ela exagera, sim. Por exemplo: tenho clientes que foram autuados porque enviaram disquetes com informações para a Receita sem a formatação solicitada por ela. Mas, ao mesmo tempo, ela passou a exigir uma série de informações com as quais pode identificar onde há sonegação e informalidade. Certa vez, o Everardo me disse que era bobagem essa história de que a CPMF era importante para a fiscalização, pois essa contribuição revelava o volume de movimentação de dinheiro dos contribuintes. “Eu consigo essas informações com os sistemas que já tenho”, disse ele.

DINHEIRO – As pequenas empresas continuam sonegando?
MARREY JR. Muito menos. Ao mesmo tempo que a Receita apertava o cerco sobre as grandes companhias, ela criava o que chamamos de “leis indutoras ao comportamento”. O que é isso? Trata-se de legislações que facilitam a vida da pequena empresa. Com isso, torna- se desinteressante sonegar impostos. O Simples é um exemplo bem-sucedido desse princípio.

DINHEIRO – A onda de abertura de capital não ajudou a reduzir a sonegação?
MARREY JR. – Ajudou. As empresas que partem para o IPO precisam colocar sua contabilidade em dia e, mais importante, registrar o histórico dos últimos cinco anos. Então, um dos primeiros passos é regularizar a situação fiscal. Afinal, pensam elas, por que vou sonegar impostos se ao recolhê-los corretamente poderei captar centenas de milhões de reais na bolsa de valores?

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“O Everardo fez a coisa certa ao concentrar a fiscalização nas grandes empresas” Everardo Maciel, ex-secretário da Receita Federal

DINHEIRO – Mesmo assim, dentro do universo empresarial, o número de companhias que fazem IPO é pequeno.
MARREY JR.É verdade. Mais uma vez, porém, vale o efeito cascata. Para colocar as contas em dia, as empresas também pressionam seus fornecedores a fazê-lo.

DINHEIRO – Qual o impacto das ações da Polícia Federal, como a prisão do banqueiro Daniel Dantas?
MARREY JR. – É positivo para reduzir a sonegação. Alguns dias depois da prisão do Dantas, eu estava saindo de uma reunião com um cliente e disse para ele: “Cuidado. Isso pode acontecer com você”. Ele me segurou mais meia hora para explicar direito essa história. Então, essas operações têm um efeito didático, mas o mais importante é a mudança de mentalidade provocada pelo ambiente de estabilidade econômica.

DINHEIRO – Como assim?
MARREY JR. Hoje, a geração de 25 a 30 anos de idade está chegando ao poder nas empresas. Esses jovens não viveram a inflação no ambiente de negócios. Não conheceram a situação de instabilidade nas regras do jogo. Então, eles estranham muito que os pais tenham dinheiro fora do País. Eles perguntam por que e para que manter contas no Exterior. Afinal, o dinheiro no Brasil tem uma remuneração muito maior do que lá fora. Aqui as taxas de juros são maiores, não há risco de o dinheiro ser confiscado, não há ganhos cambiais, etc. Além disso, muitos empresários já estão pensando na divisão de bens entre os herdeiros. A existência de recursos no Exterior torna-se um problema na hora da partilha, além de significar um risco para o dono.

DINHEIRO – Que tipo de risco?
MARREY JR.Desde os atentados contra as Torres Gêmeas de Nova York, o fluxo de dinheiro no mundo vem sendo acompanhado de perto pelos organismos internacionais e pelos serviços de inteligência dos Estados Unidos. Eles sabem que essa é uma das formas de sufocar os grupos terroristas. Então, já não há tanta liberdade para enviar o dinheiro para outros países e não prestar esclarecimentos sobre essa movimentação.

DINHEIRO – Essa onda de redução da informalidade é um fenômeno mundial ou está restrito ao Brasil?
MARREY JR. – Nos países desenvolvidos, a sonegação sempre existiu e continuará existindo, assim como no Brasil. Mas aqui ela diminuiu consideravelmente. O que está acontecendo é que estamos nos aproximando do que acontece nas economias mais fortes do planeta. É resultado também da globalização. As grandes empresas multinacionais vêm aqui para comprar companhias brasileiras. Mas elas não querem ficar com o passivo fiscal ou trabalhista. Então, a primeira medida para que uma empresa brasileira se torne atraente é colocar sua situação em dia. Nada como a perspectiva de ganhar muito dinheiro para que todos comecem a se preocupar com a legalidade.