29/12/2004 - 8:00
Embora seja tão velha quanto as dívidas da Independência, no século XIX, a história do déficit brasileiro começa oficialmente em 1947, quando teve início a organização das contas públicas nacionais. Desde então sua evolução foi crescente: levou a duas moratórias da dívida externa, uma em 1983 e outra em 1987, e à assinatura de nove acordos com o Fundo Monetário Internacional. O último foi firmado por FHC em 2002, mas o maior deles é de 1999, quando o Brasil quebrou e os EUA passaram um pires de US$ 41 bilhões em benefício dos cofres do governo. Desde o ano passado, porém, essa situação se inverteu. Após ter registrado um déficit em transações correntes de US$ 7,637 bilhões em 2002, o País teve um superávit de US$ 4 bilhões em 2003. Foi o primeiro em 10 anos. Em 2004, a situação será ainda melhor: o saldo positivo pode superar US$ 10 bilhões, o maior da história. ?É um desempenho excepcionalmente robusto?, afirma o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, destacando que a economia nunca cresceu tanto com superávit nas operações do País com o exterior.
A melhora é, em boa parte, provocada pela mudança na forma de inserção mundial do Brasil. Antes da desvalorização cambial de janeiro de 1999, o País se financiava quase que exclusivamente com operações financeiras, elevando juros para atrair capital especulativo. ?Depois da estabilização heterodoxa de 1994, a estratégia era crescer com poupança externa, portanto, com déficit em conta corrente?, lembra o ex-ministro da Fazenda Luiz Carlos Bresser-Pereira, para quem a fórmula foi desastrosa. Mas com a flutuação do Real, a situação mudou. Os produtos brasileiros começaram a ficar mais competitivos e a ganhar novos mercados, o que reverteu o déficit da balança comercial. Agora é do crescimento das exportações que sai a maioria dos dólares que ajudaram a transformar em superávit o saldo negativo que havia chegado a US$ 33,4 bilhões em 1998. ?A profunda melhora no saldo da balança comercial fez com que o Brasil conseguisse equilibrar as contas externas?, diz o consultor Marcelo de Ávila.
A previsão para o saldo comercial neste ano supera os US$ 32 bilhões, muito acima dos US$ 24 bilhões do ano passado e, desta vez, sem pagar o preço da anemia de importações. Neste ano, as exportações devem superar os US$ 95 bilhões e as importações somarão mais de US$ 60 bilhões ? ano passado elas foram de US$ 48 bilhões ?, puxando o aquecimento da economia e a recuperação do mercado interno. Para os analistas, o efeito mais relevante da atual situação contábil do País é a redução da vulnerabilidade externa. A dívida pública, que chegou a ter quase 40% de seu total indexado ao dólar, teve esse valor reduzido a cerca de 11% este ano, enquanto o risco-país, que superou 2 mil pontos em 2002, voltou aos 400. Ilan Goldfajn, ex-diretor do BC e professor da PUC-RJ, lembra que a queda do endividamento externo do setor privado é explicada em boa parte pelo superávit em conta corrente. Em março de 2003, a dívida privada alcançava US$ 100 bilhões. Em outubro deste ano era de US$ 89 bilhões. As empresas pagaram seus débitos e deixaram de tomar novos empréstimos em moeda estrangeira. A última palavra no mundo das finanças é lançar bônus no exterior denominados em reais. Um outro elemento que ajuda o superávit externo é a retomada de 4% este ano dos investimentos diretos estrangeiros, que somarão US$ 15 bilhões. Esperava-se que a entrada de capitais estacionasse ao redor de US$ 11 bilhões. Se tudo seguir nesse ritmo, acredita-se que a dívida privada brasileira caia para US$ 73 bilhões ? cerca de 13% do PIB ? em 2005.
Para alguns economistas, no entanto, o superávit das contas externas também tem o seu lado negativo. ?São pelo menos US$ 10 bilhões que deixam de ser investidos na economia?, afirma Carlos Urso, da LCA Consultores. O motivo é estatístico: superávit em transações correntes significa que o País está exportando divisas para financiar o déficit de outras nações. Outro economista, o professor da Fundação Getúlio Vargas, José Cezar Castanhar, diz que o Brasil é o Forest Gump da economia mundial: ?O País se beneficia de situações que não foram provocadas ou idealizadas por ele?. Para Castanhar, a recuperação da economia mundial e a volta dos fluxos de investimento para os emergentes ajudaram, e muito, na melhora das contas externas. ?A economia cresceu a despeito da política econômica, por conta do ganho de competitividade do setor produtivo?, disse. Ele atribui exclusivamente ao trabalho e aos esforços dos ministros da Agricultura, Roberto Rodrigues, e do Desenvolvimento, Comércio e Indústria, Luiz Fernando Furlan, o forte crescimento das exportações e o conseqüente superávit da balança comercial. Julio Cesar Gomes de Almeida, do Iedi, o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial, concorda com a teoria de que países em desenvolvimento como o Brasil precisam de déficits em conta corrente ? ou seja, usar poupança externa ? para financiar o crescimento, mas acha que o caso brasileiro merece uma exceção. ?Estamos pagando o preço de anos de equívocos. O Brasil precisará ter superávits nos próximos anos porque no passado se endividou muito e mal?, disse à DINHEIRO. A questão agora é saber se as contas vão caminhar como estimam governo e mercado. Os próximos meses mostrarão se o Brasil vai mesmo dar adeus ao déficit que persegue os brasileiros desde que Dom João VI zarpou do porto do Rio de Janeiro.