Houve um tempo, no auge do Milagre Econômico dos anos 70, em que a sigla CAL marcava o horizonte de uma centena de edifícios em São Paulo. As três letras, associadas ao logotipo, uma concha vermelha, pontuavam as obras da Construtora Adolpho Lindenberg. Os prédios em estilo neoclássico, cujos apartamentos eram vendidos a mais de US$ 1 milhão a unidade, transformaram seu dono, Adolpho, o ?Dr. Adolpho?, num ícone da classe alta. Avesso à publicidade, sempre à sombra, naquela época de fausto ele ocupava uma ampla sala de um edifício inteiro da empresa no centro da capital paulista, na rua General Jardim. Depois de uma concordata em meados dos anos 80 (atribuída por ele aos erros da correção monetária imposta pelos economistas do presidente João Figueiredo), a construtora encolheu. Tem 20 canteiros em andamento e faturamento modesto de R$ 25 milhões por ano. O escritório agora ocupa um único andar no bairro dos Jardins. ?Recomeçamos do zero?, resume Lindenberg. Sorri, e por poucos segundos perde a semelhança com o Santos Dumont da nota de 10 cruzeiros que circulava nos anos de chumbo dos militares no poder.

Aos 79 anos, Lindenberg ainda trabalha diariamente das 9h00 às 18h00. Popular entre os funcionários, de palavras pausadas, prefere levantar-se da cadeira a chamá-los pelo telefone. Entregou ao filho a administração do negócio (?é a parte chatésima?, sublinha) para se dedicar ao desenho das construções e das fachadas. Inspira-se num livro de páginas amareladas e apinhadas de ácaros, Documento Arquitetônico, de José Wasth Rodrigues, editado em 1945. É esta a versão que ele ainda consulta. ?É minha bíblia?, resume. Dali ele tirou os traços da concha que sublinhava as frontes das construções históricas de Ouro Preto, transportada para a marca da construtora.

Bíblia, a rigor, não há em seu escritório. Um passeio pelos objetos da mesa de trabalho, contudo, ajuda a defini-lo. Há uma imagem de 50 centímetros de Nossa Senhora Aparecida. Há também um retrato de seu primo de primeiro grau e inspirador, Plínio Corrêa de Oliveira, já falecido, fundador da sociedade Tradição, Família e Propriedade, a TFP. O leão dourado em fundo vermelho, brasão da entidade, parece saltar da fotografia. Nos anos 60, entre os generais de farda e os militantes de esquerda submetidos à tortura, a TFP era o ímã do conservadorismo católico, representava a direita da direita. Seus membros, ou sócios, como se auto-intitulam, vez ou outra ainda saem à rua para esbravejar contra o MST e uma suposta decadência da sociedade. Já não fazem o barulho de antes. Parecem confinados às idéias do sombrio casarão da organização secreta, no bairro de Higienópolis, e aos livros promovidos pelo grupo. Um deles circula na troca de e-mails pela internet com destaque. É Os católicos e a economia de mercado, da LTr, editora especializada em obras jurídicas, cujo dono é fervoroso cristão. O autor: Adolpho Lindenberg. O próprio Lindenberg, em resumos cuidadosamente preparados, trata de divulgá-lo. Quer transformá-lo na bíblia dos ultraconservadores.

Vassalagem. São 230 páginas sem meias-palavras. Trata-se de uma defesa da propriedade privada e do liberalismo econômico. Trechos do livro, pinçados quase ao léu, o resumem à perfeição. ?O direito
de propriedade, aqui no Brasil, está sendo vítima de duas ameaças de natureza diversa: uma que consiste no aumento constante
da carga tributária ? já uma das mais altas do mundo ? e outra que é representada
pelos movimentos dos sem-terra e sem-teto?. Num outro capítulo, ele é ainda mais claro e saudosista: ?Com razão afirmou Talleyrand, o grande diplomata francês do tempo de Napoleão e Luís XVIII (ele próprio, entretanto, um revolucionário): ?Quem não viveu antes de 1789 não conheceu a do-
çura de viver??. Induzido a comentar esse fascínio pelo Antigo Regime, num mundo
em que o povo era apenas choldra, Lindenberg vai ainda mais longe em seu
túnel do tempo particular, feito de lembranças da vassalagem e dos senhores feudais. ?O ambiente na Idade Média era muito mais saudável do que hoje, ali sim a sociedade vivia em meio a valores cristãos e sensatos.? Morria-se de peste e fome. Pessoas eram queimadas nas fogueiras. O recurso da lei era a chibata.

A admiração pela Idade Média vem de família. Não do bisavô, nascido em Lubeck, na Alemanha, ou mesmo do pai, respeitado médico paulistano. Seu guia intelectual foi o primo Plínio, o ?cruzado do século XX?, na definição de um autor italiano amigo da TFP. Lindenberg dedica o livro ao parente e mestre: ?A
ele, com saudades imorredouras, deixo aqui minha gratidão e homenagem?. Dos mais íntimos, Lindenberg nunca escondeu a
afeição imorredoura pela TFP. Mas também nunca a expôs publicamente. A dedicatória de Os católicos e a economia de mercado a revela e amplia. ?Ajudei financeiramente a TFP, sim, e ainda faço isso?, disse à DINHEIRO. Lindenberg fazia parte de uma espécie de dissidência interna, a ?Sempre Viva?, ainda mais conservadora e apegada ao catolicismo medieval. Faz vigília quase semanal em frente ao santuário da entidade, no bairro de Higienó-
polis, diante de uma imagem de Nossa Senhora. Comunga todos
os dias numa igreja próxima de seu apartamento.

As atividades de Lindenberg na TFP, em paralelo aos negócios da construtora, acompanharam a trajetória política do Brasil na segunda metade do século XX. Na véspera do golpe que depôs João Goulart, ele foi um dos empresários a compor o Ipes, o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, construído para promover a livre iniciativa. Nasceu como um centro de estudos neutros e técnicos ? o acirramento dos ânimos políticos, contudo, o transformou num grupo promotor de conspiração contra o governo de Goulart. Em 1963 já eram 500 empresários ancorados numa idéia central: a liberdade econômica deveria preceder a liberdade política. No Ipes, Lindenberg foi o responsável pela tra-
dução de alguns clássicos dos economistas liberais, como Ludwig
von Mises e Friedrich von Hayet, próceres do liberalismo, ambos laureados com o Prêmio Nobel. Um dos companheiros de Lindenberg
no Ipes era o empresário e intelectual Paulo Ayres. ?Adolpho teve a coragem política e moral de dizer com honestidade o que pensa, mesmo sabendo antecipadamente que isso poderia resultar em
críticas ferozes?, diz Ayres. ?Ele sempre foi fiel a determinados princípios, e deles nunca se afastou.?

A Construtora Adolpho Lindenberg, no apogeu, patrocinava um programa noturno da TV Bandeirantes apresentado pelo jornalista Cláudio Marques. No dia 28 de setembro de 1975, numa coluna dominical que mantinha no jornal Shopping News, paralelamente à televisão, Marques escreveria o seguinte a respeito da TV Cultura: ?…A infiltração (a essa altura não é infiltração, é domínio total, ou quase…) da esquerda contestatória no sistema e na democracia em vários escalões, só não vê quem é conivente ou burro. O caso da TV Viet-Cultura extrapolou. E muito?. Foi a senha para a prisão do diretor de jornalismo da emissora, Wladimir Herzog, pelos comandantes do II Exército. Em 26 de outubro, Herzog morreria assassinado nos porões do Doi-Codi. Desde então, Cláudio Marques foi condenado ao ostracismo dos dedos-duros. ?Anunciávamos no programa dele porque tinha ótima audiência, foi uma sugestão da agência de publicidade que trabalhava conosco?, diz Lindenberg. Indagado a respeito das doações feitas à Oban, a Operação Bandeirante, cérebro da tortura em São Paulo, responde com rapidez: ?É mentira?. O Brasil mudou, a Anistia de
1979 ajudou a apagar crimes, diferentemente do que ocorreu no
Chile e na Argentina. Um operário é presidente da República. A
TFP é apenas um fantasma. O mercado de construção civil deve cair 8% este ano. Nada disso, porém, afasta Adolpho Lindenberg de um estilo que parece se refletir em seus prédios: o conservadorismo pré-1789 como modo de vida.