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Manutenção da rede de energia: Eletropaulo demitiu 7 mil e remeteu lucros para o exterior

 

O dia D foi marcado. Será 3 de março, uma segunda-feira. É a data prevista para o início da reestatização da maior empresa elétrica da América Latina: a Eletropaulo, que distribui energia em São Paulo para 14 milhões de clientes. A operação já foi batizada de federalização e consiste em transferir o controle da companhia, hoje em poder da americana AES, para a Eletrobrás. ?Com esses americanos, não dá mais?, desabafa Luiz Pinguelli Rosa, presidente da Eletrobrás, à DINHEIRO. ?Eles vieram, levaram a empresa com dinheiro público e continuam tratando o País como uma quitanda. É a maior sacanagem. Pode escrever isso aí.? A indignação de Pinguelli é traduzida em números escabrosos. Para comprar a Eletropaulo, em abril de 1998, a AES recebeu dois empréstimos do BNDES, que totalizam US$ 1,2 bilhão. Não pagou a dívida e também não ofereceu nada em garantia, a não ser as ações da própria Eletropaulo. O problema é que, depois de uma sucessão de erros de gestão que se somaram a uma política deliberada de remessas de dividendos para o exterior, os cofres da Eletropaulo secaram. A companhia deve R$ 5,5 bilhões, metade com correção cambial, e, segundo a cotação das ações, vale apenas US$ 280 milhões. Ou seja: a reestatização pode deixar um rombo de US$ 1 bilhão para a União. Quem conhece detalhes dessa história é o ex-presidente do BNDES, José Pio Borges. Ele, que autorizou os empréstimos para a AES, hoje é o consultor contratado pela empresa americana para resolver o pepino da dívida no banco. ?É imoral?, diz Pinguelli Rosa. Procurado pela DINHEIRO, Pio Borges não retornou as ligações.

 

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Pinguelli Rosa, da Eletrobrás: Concessão da Eletropaulo será retomada pela estatal. “Os americanos da AES nos tratam como uma quitanda.”

 

Proposta ruim. O dia 3 de março vem sendo tratado como a data crucial de todo esse imbróglio porque a AES, que está inadimplente, tem até 28 de fevereiro para oferecer uma nova proposta de solução ao BNDES. O presidente da empresa, Steven Clancy, já se reuniu com a ministra Dilma Roussef, de Minas e Energia, e propôs quitar a dívida com uma usina térmica em Uruguaiana, no Rio Grande do Sul, que até agora só deu prejuízos à AES. Ninguém levou a sério. ?Será que eles querem receber graciosamente mais US$ 1 bilhão do BNDES para continuar com a Eletropaulo??, indaga Dilma (leia sua entrevista na página 31). ?Se não pagarem, vamos tomar os ativos de volta.? A posição da Eletropaulo, onde nenhum executivo está autorizado a prestar informações públicas, tem sido ambígua. A alguns interlocutores, Steven Clancy tem dito que o BNDES acabará negociando com a AES para evitar uma reestatização, em razão dos possíveis danos à imagem do País na comunidade internacional. Só que esse argumento não assusta o governo. ?Seria um escândalo nos curvarmos à chantagem de aceitar qualquer coisa só para evitar uma estatização?, garante o secretário-executivo do Ministério das Minas e Energia, Maurício Tolmasquim. O problema é que Clancy também vê com bons olhos a estatização. Ele perderia a Eletropaulo, mas se livraria da dívida e de US$ 1,2 bilhão e continuaria com a AES Tietê, uma geradora que vale cerca de US$ 700 milhões.

 

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Sede, em São Paulo: Remessas de dividendos chegaram a US$ 320 milhões em três anos

 

Na prática, o caso Eletropaulo é o exemplo acabado de uma privatização pantanosa, em que se misturam venalidade e incompetência. O próprio leilão já foi marcado pela polêmica porque, pela primeira vez, o BNDES decidiu emprestar recursos para um comprador estrangeiro. E depois de levar a distribuidora sem colocar um centavo do próprio bolso, a AES apostou que conseguiria pagar as dívidas com os lucros que retiraria da Eletropaulo. ?Eles tinham uma política agressiva de distribuição de dividendos?, conta Sérgio Tanashiro, analista do Unibanco. Só nos últimos três anos, foram remetidos US$ 320 milhões, numa proporção superior aos 25% do lucro determinados pela lei. A generosidade com os sócios controladores, às custas do caixa das empresas, era comum a todas as empresas da AES. Na geradora Tietê, foi feita uma redução de capital superior a R$ 200 milhões. Em 2001, as remessas representaram 140% do lucro da geradora. Na mineira Cemig, que a AES conseguiu controlar mesmo sendo acionista minoritária, o esquema consistiu em antecipar dividendos sobre lucros futuros. Isso foi feito em 1998. Assim, a empresa distribuiu aos sócios resultados reais e fictícios. Na distribuidora AES Sul, foram contabilizadas receitas de R$ 373 milhões que, de acordo com a Agência Nacional de Energia Elétrica, são irregulares. ?Eles se comportaram como aventureiros que vieram ao Brasil para sucatear empresas e remeter lucros?, avalia Antônio Carlos dos Reis, presidente do Sindicato dos Eletricitários de São Paulo. ?Agiram como bandidos.? Na área trabalhista, a Eletropaulo reduziu o quadro de funcionários de 10,5 mil para 3,7 mil desde a privatização. Mas há 17 vice-presidentes, quase todos americanos, com salário superior a R$ 30 mil, casa, carro, escola gratuita e uma série de outros benefícios.

 

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Clancy, o presidente: Sua proposta de acerto foi rechaçada no BNDES. AES pretendia pagar sua dívida com usina que nunca deu lucro

 

Ações viram pó. Embora Steven Clancy se apegue ao argumento da credibilidade do Brasil no exterior para questionar uma eventual reestatização, a imagem da AES em seu próprio país não é das melhores. Em dois anos, as ações da companhia desabaram. Caíram de 60 dólares para menos de 10 dólares e, só no quarto trimestre de 2002, o prejuízo foi de US$ 2,7 bilhões. A empresa foi até comparada à Enron, notória por suas fraudes contábeis. Isso porque a estratégia financeira da AES combinava altíssimo endividamento ? hoje em
US$ 22 bilhões ? com investimentos de retorno duvidoso. Um exemplo: redes de fibra óptica associados à infra-estrutura de energia. Era algo que, durante a febre da internet, não gerava lucros, mas estava na moda porque valorizava as ações das empresas. Só no Brasil, a AES chegou a enterrar mais de R$ 600 milhões em empresas como Eletronet, e Infovias, que seriam usadas para a transmissão de dados em banda larga e hoje valem muito pouco. Além disso, a maior parte das dívidas das empresas geridas pela AES foi indexada ao dólar. Portanto, embora exista uma crise real no setor elétrico, fruto do apagão do governo Fernando Henrique Cardoso, grande parte dos problemas da Eletropaulo decorre de erros internos. ?Estamos numa situação parecida com a da era estatal, em que todas as empresas devem a todas e ninguém paga ninguém?, diz o economista Fernando Camargo, especialista do setor. ?Mas, independentemente da solução, a AES terá de sair da Eletropaulo.?

 

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Torres de transmissão: Governo finaliza pacote de socorro ao setor elétrico

 

Para atacar a crise, a ministra Dilma Roussef e seus técnicos estão tirando da cartola um plano que, mais uma vez, socorre as distribuidoras com renegociações de dívidas e aumentos de tarifas. Ou seja: o Brasil pagará a conta. Mas no caso específico da Eletropaulo, preservar a AES está fora de questão. A concessão ficará com a Eletrobrás, que passará a dever ao BNDES. ?O banco fez uma operação suicida e o calote é iminente?, disse à DINHEIRO Carlos Lessa, presidente do BNDES. O prejuízo é tão certo que Lessa já recebeu ordens do Banco Central para realizar provisões nos balanços. E há contratos tão maquiavélicos, que, em caso de calote da AES, aceleram o pagamento da dívida da própria Eletropaulo. ?Não consigo mais dormir?, diz Lessa. O passo seguinte será o saneamento da empresa, para um novo leilão, que já tem interessados. A GP, de Jorge Paulo Lemann, criou um fundo para investimentos na área. O Opportunity, de Daniel Dantas, tentou negociar diretamente com a AES. E a CPFL, do empresário Antônio Ermírio de Moraes, que distribuiu energia no interior paulista, seria um candidato natural. Para a AES, o jogo da Eletropaulo acabou. O ponto lastimável é que, ainda assim, a empresa poderá seguir operando a lucrativa Tietê, como se nada tivesse acontecido.

?OU DINHEIRO OU A ELETROPAULO?
Encarregada de desatar o nó do setor elétrico, Dilma Roussef tem virado madrugadas em Brasília. Minutos antes da meia-noite da quarta 12, ela recebeu o editor Hugo Studart e disse que, se a AES não pagar, a Eletropaulo volta para o governo.

 

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“Se eles não pagarem, vamos tomar os ativos e as garantias”

 

Como o governo pretende resolver a inadimplência
da AES?
É um problema bancário que requer solução bancária. A decisão do governo é que o BNDES lidere a operação e cabe à diretoria do banco tomar os procedimentos para que a empresa pague o que deve. É assim que funciona em todos os países desenvolvidos. As dívidas são cobradas de forma eficiente e implacável.

A Eletropaulo será estatizada?
Se a AES não pagar o que deve, espera-se que o banco cumpra com suas obrigações e execute as garantias. Ou será que querem que o BNDES dê graciosamente mais US$ 1 bilhão a essa empresa? Ora! Se não pagar até o prazo legal, o banco tem que executar o devedor renitente. Significa que ou a AES paga com dinheiro ou com as garantias. Se por acaso os ativos do devedor são a própria Eletropaulo, então o BNDES vai tomar a Eletropaulo para cobrir a dívida.

Há possibilidade de acordo?
Ninguém do governo é contra o devedor. Só achamos que a empresa neste momento não é solvente. Não paga seus compromissos. Por isso qualquer acordo está dependendo muito mais do devedor do que da boa vontade do credor. Soube que fizeram uma proposta de acordo considerada não aceitável para o banco. O devedor pode até melhorar a proposta e levar o credor a lhe conceder maior fôlego. Mas se a diretoria do banco avaliar que não há mais saída para preservar o interesse público, então que seja respeitada a Lei da Responsabilidade Fiscal.

Qual a sua posição sobre o plano de federalizar a Eletropaulo?
O processo tem desenlace complexo, mas está próximo do fim. O que posso adiantar é que, se for necessário sanear a Eletropaulo, ela será saneada a bem do interesse público.

Como será a prometida revolução no setor energético brasileiro?
Acabamos de criar um grupo de trabalho que tem até o fim de junho para apresentar o novo modelo para a Câmara de Gestão do Setor Energético. A base deverá ser criar regras que permitam contratos bilaterais a longo prazo entre as geradoras e as distribuidoras de energia, de forma a garantir que toda a cadeia do setor energético saia ganhando. Hoje estão todos insatisfeitos. É preciso reduzir os riscos a longo prazo para os investidores em novas usinas, para que as companhias distribuidoras tenham margem de lucro que permita uma boa saúde financeira e, por fim, para que os consumidores recebam energia a preços razoáveis. Vamos ouvir todas as partes interessadas.

Que medidas práticas estão sendo tomadas?
Uma das principais é a formação de um pool de geradoras para vender energia para as distribuidoras. O modelo atual fez do setor um caos. A energia chegou a ser vendida a R$ 684 durante a crise do apagão e hoje, com os reservatórios das hidrelétricas cheios, o excedente está sendo comercializado a R$ 4. O mercado atacadista deixará de ser especulativo.