28/05/2020 - 17:43
Há pouco mais de uma semana, Fernando Cesar Borba de Oliveira, 41, foi desligado do setor de comunicação da Polícia Rodoviária Federal no Paraná. O agente, que estava na função há três anos e na corporação há sete, recebeu a notícia de que voltaria ao serviço operacional, nas estradas de Curitiba e no litoral do estado, em razão de um ‘desgaste’ com o departamento geral da corporação, sediado em Brasília. A exoneração foi publicada no Diário Oficial da União da última segunda, 25.
“‘Desgaste’, ‘desalinhamento’, ‘momento político’, basicamente foram essas as expressões utilizadas”, conta o ex-assessor da PRF paranaense sobre a justificativa para seu afastamento do cargo de intermediário nas relações com a imprensa.
Sua saída do setor foi anunciada após a participação em uma reportagem, veiculada na TV Globo, que associava o aumento do número de acidentes nas rodovias federais ao afrouxamento da quarentena. Na reportagem, Oliveira, na qualidade de porta-voz da PRF no Paraná, expressa a preocupação em aumentar a fiscalização para evitar acidentes com feridos graves – o que, segundo ele, poderia sobrecarregar ainda mais o sistema de saúde do país, que já têm dificuldade de prestar atendimento após o aumento exponencial do volume de pacientes que precisam de internação em UTIs por complicações no quadro de infecção pelo novo coronavírus.
“Minutos após a veiculação da reportagem, houve ao menos um telefonema de Brasília para a superintendência no Paraná, no qual o diretor executivo da PRF alegaria um ‘desalinhamento’ da matéria, pelo simples fato de mostrar uma ação de fiscalização de radar e de supostamente conter uma defesa das medidas de isolamento social – dois temas considerados ‘sensíveis’ aos olhos do presidente da República”, afirmou Oliveira.
O Estadão entrevistou o ex-assessor passado a agente operacional para saber detalhes do caso.
Estadão: A que exatamente você atribui seu afastamento do setor de comunicação da PRF?
Fernando Cesar Borba de Oliveira: Setores da direção da polícia em Brasília não gostaram do teor de uma reportagem televisiva sobre acidentes de trânsito nas rodovias federais, veiculada em rede nacional, na manhã do último dia 15. Minutos após a exibição da reportagem, houve ao menos um telefonema para a superintendência no Paraná, no qual o diretor executivo da PRF alegou um ‘desalinhamento’ da matéria, pelo simples fato de ela ter mostrado uma ação de fiscalização com uso de radar portátil, e por supostamente estar contida nela uma defesa das medidas de isolamento social. Todos sabemos que esses dois assuntos – controle de velocidade em rodovias e o confinamento por conta da pandemia – são considerados sensíveis aos olhos do presidente da República. Mas, na verdade, a reportagem apenas tratava de dados sobre acidentes que são públicos e que obviamente estão relacionados, entre outros fatores, ao fluxo maior ou menor de veículos nas rodovias federais. Apesar disso, a reportagem provocou uma reação desproporcional.
Estadão: Quando você foi informado do afastamento e qual foi a justificativa?
Fernando Oliveira: No dia 18 deste mês. Contraditoriamente, o meu trabalho à frente do Setor de Comunicação da PRF no Paraná, que vinha desde 2017, foi elogiado. A alegação para a saída é de que haveria um desgaste em relação ao Departamento, em Brasília. ‘Desgaste’, ‘desalinhamento’, ‘momento político’ – basicamente foram as expressões utilizadas. Acredito que o termo chave seja esse: desalinhamento. Mas a pergunta que cabe nesse caso é: desalinhamento em relação a que exatamente?
Estadão: Você consegue responder a essa pergunta?
Fernando Oliveira: A postura da área de comunicação de qualquer órgão público deve estar alinhada sempre com os princípios constitucionais, como o da transparência e o da impessoalidade. Se estiver alinhada a uma interferência sem amparo técnico, ainda que ela tenha partido do presidente da República, não se trata de algo legítimo. Pelo contrário, é algo irregular e que deve ser combatido. A comunicação de um órgão policial não pode ser instrumentalizada para servir a interesses pessoais. Não por acaso, a suspensão do uso dos radares portáteis acabaria sendo derrubada, meses depois, pelo poder judiciário. Mas é triste constatar que tal medida presidencial ainda exerça efeitos negativos no dia a dia dos serviços de fiscalização de trânsito e de comunicação da Polícia Rodoviária Federal. Assim como a Polícia Federal, na condição de órgão policial da União, a PRF também deve funcionar como uma polícia de estado, livre de interferências políticas ou meramente pessoais.
Estadão: Então você enxerga uma tentativa de politização da PRF?
Fernando Oliveira: Enxergo e se trata de um processo mais do que nítido. Em determinado momento do segundo semestre de 2019, por exemplo, a situação ficou tão bizarra que, quando a pauta de uma entrevista dizia respeito a trânsito, o policial na função de porta-voz chegava à situação extrema de ter que memorizar de antemão a lista de temas proibidos, sobre os quais ele não poderia falar, porque o presidente havia feito declarações polêmicas sobre ele nas últimas semanas. Desde radar até a exigência de cadeirinha para transportar crianças, passando por exame toxicológico, entre outros assuntos. E uma fala presidencial tem um grande potencial para deseducar a população. Na época, houve casos de motoristas abordados pela PRF com crianças no colo ou soltas dentro de carros que alegavam: ‘mas a exigência e a multa não foram derrubadas pelo presidente?’
Estadão: Em agosto do ano passado, o presidente Jair Bolsonaro suspendeu o uso de radares nas rodovias federais para evitar ‘utilização meramente arrecadatória’. Houveram manifestações contrárias e, em abril deste ano, a Justiça barrou a remoção dos radares fixos. Como o tema é tratado entre os agentes?
Fernando Oliveira: A divulgação de imagens com flagrantes de velocidades muito superiores aos limites máximos sempre foi algo de praxe, comum no dia a dia na área de comunicação da PRF, até agosto de 2019. O mesmo vale para dados relacionados à quantidade de imagens captadas. De lá pra cá, porém, ficamos impedidos de fazer esse tipo de divulgação nos estados, tanto das imagens quanto dos números. O assunto ‘radar’ passou a ser um tabu. Mesmo após a decisão judicial, que segue válida até hoje, e o retorno da utilização dos radares, a proibição quanto à menção ao tema se manteve intacta. Inclusive os números e imagens de flagrantes eventualmente captados deixaram de ser divulgados, como era feito regularmente, até agosto de 2019. Na prática, assim como não houve amparo técnico nem jurídico para a decisão que suspendeu o uso de radares, também não há uma justa motivação para proibir os policiais de abordar o tema controle de velocidade em entrevistas, divulgar fotos de operações com radar, exibir o equipamento em reportagens de TV, etc.
Estadão: Como a centralização de pedidos e dados por veículos de comunicação atinge as superintendências?
Fernando Oliveira: Foi uma espécie de mordaça aos policiais, uma sonegação de informações. Houve centralização extrema na assessoria de comunicação em Brasília, que também não responde parte dos pedidos, obrigando jornalistas a recorrer à lei de acesso à informação. Algo lamentável e que acaba por afetar a credibilidade de qualquer assessoria de imprensa, especialmente na área pública.
Estadão: Antes da sua demissão, você chegou a receber uma ordem para excluir fotos de radares do acervo on-line disponibilizado pela PRF. Já houve outras solicitações nesse sentido em alguma outra ocasião?
Fernando Oliveira: A ordem foi transmitida poucas horas após a veiculação da reportagem que desagradou Brasília, através da Superintendência Executiva da PRF no Paraná. Mantemos nessa plataforma online um repositório de quase 9 mil fotografias em alta resolução. É um acervo histórico que registra parte da história da polícia desde 2014. Não vi motivação justa nem amparo legal nessa ordem, de caráter pra lá de duvidoso. Tanto que não a cumpri. Ainda não sei de onde partiu exatamente.
Estadão: Você vê riscos nessas tentativas de esconder o uso da fiscalização com radares?
Fernando Oliveira: O excesso de velocidade está entre as quatro principais causas de mortes em rodovias federais no Brasil. Não é por acaso que a PRF, ao longo dos anos, fez um investimento alto na aquisição de tais equipamentos. Cada radar portátil custa mais de R$ 100 mil. Apenas no Paraná, onde há 25 deles, são R$ 2,5 milhões em equipamentos. Não há razão de ordem técnica para deixá-los subutilizados ou mesmo escondidos. Mostrar que a polícia está preocupada com o excesso de velocidade e punindo os infratores é uma medida que tende inclusive a aumentar as condições de segurança das rodovias. Além da multa, conforme o nível da velocidade registrada pelo radar, o motorista terá a carteira de habilitação suspensa de forma direta, por períodos de dois a oito meses. Não é pouca coisa. Ontem mesmo uma equipe da PRF flagrou um motociclista a 189 km/h em um trecho de Serra do Mar onde o limite é 80 km/h, na BR-376, divisa entre Paraná e Santa Catarina. Mas a imagem infelizmente não pôde ser divulgada à imprensa, por conta de todas essas restrições impostas desde o ano passado. A gente sabe que, quanto maior é a percepção de que a fiscalização policial está acontecendo, maior é a tendência de um contingente mais expressivo de motoristas de respeitar as normas de trânsito, o limite de velocidade. Se a polícia deixa de mostrar esse tipo de trabalho, deixa de exibir casos extremos de excesso de velocidade, bem superiores aos limites máximos, deixa de divulgar o número de pessoas autuadas por radares, por uma questão de mero capricho pessoal, ainda que seja do chefe do executivo, não tem como não enxergar um problema grave aí. Na minha avaliação, teria que ser apurado um possível desvio de finalidade, porque interferência política indevida é um fato mais que concreto.
Estadão: Como você enxerga a exoneração do diretor-geral da PRF, Adriano Furtado, afastado do comando da corporação depois de assinar uma nota de pesar pelo falecimento de um agente? Na reunião ministerial do dia 22, o próprio presidente conta que ligou para repreender o ex-diretor.
Fernando Oliveira: O ataque à nota de pesar foi algo profundamente lamentável, especialmente porque ela estava correta e o colega morto por coronavírus não tinha nenhuma doença pré-existente.
Estadão: Qual a sua opinião sobre o isolamento social como medida para conter a disseminação de coronavírus? Você acha que o governo está certo ao pregar a flexibilização da quarentena?
Fernando Oliveira: Antes de responder, preciso registrar que minhas opiniões pessoais nunca afetaram a função de porta-voz da PRF no estado, que vinha exercendo desde 2017. Com ou sem pandemia, quando o assunto é trânsito, nosso trabalho vai sempre na direção de buscar reduzir danos, para que ocorram menos acidentes e, por consequência, menos pessoas mortas ou feridas. Minha opinião sobre isolamento coincide com a da maioria dos médicos, pesquisadores e epidemiologistas: como não há vacina, nem remédio para o novo coronavírus, e mesmo o uso de máscaras não é algo 100% eficaz, as medidas de isolamento e distanciamento são imprescindíveis para conter o ritmo de novas infecções. Ocorre que o contexto daquela reportagem que desagradou alguém em Brasília ia justamente no sentido de tentar reduzir o número de leitos do SUS ocupados por vítimas de acidentes de trânsito no Brasil, que historicamente representam mais da metade das internações. Reduzir os acidentes de trânsito é uma medida importante para, no mínimo, não agravar ainda mais uma situação de provável colapso do sistema público em todo o país.