01/11/2006 - 7:00
O local é o Clube da Aeronáutica, encostado no aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro. Dali, é possível ver, a alguns metros, o prédio que serviu de sede para um mito corporativo brasileiro: a Panair, durante décadas a maior companhia aérea do Brasil. Na fachada do edifício, o logotipo da empresa, pintado de branco, está pela metade. E é cultuado até hoje como um símbolo de resistência, a mesma resistência de centenas de ex-funcionários que se reúnem religiosamente todo dia 22 de outubro para comemorar o aniversário da antiga empregadora. No encontro do último domingo, no clube aeronáutico, houve até quem sugerisse o registro do caso no ?Guiness Book?, o livro dos recordes. Os ex-Panair talvez sejam um exemplo único de devoção a um grupo que não opera há mais de 40 anos. Comandantes levam orgulhosos seus crachás. Aeromoças, seus broches. Uma delas, Sônia Leser, foi eleita Miss Asas do Universo. Mas, entre as cabeças brancas, também se vêem crianças de 7 ou 8 anos de idade, atestando que a bandeira verde logo será hasteada por uma novíssima geração. Este ano, a Família Panair virará pessoa jurídica. Isso mesmo, uma associação de ex-funcionários e simpatizantes que nasce para assegurar a sua continuidade e, quem sabe, ganhar representatividade política.
?É um grande exemplo de luta. Num país onde a memória não passa da missa do sétimo dia, mantermos essa resistência durante 41, 42, 43 anos é uma coisa fantástica. Passamos todo o período da ditadura. Hoje, era para estarmos sepultos?, diz o comissário Geraldo Cunha, que chora em seguida. Ao lado dele, a arqueóloga Ana Cristina de Sampaio, neta de Paulo Sampaio, o antigo presidente da Panair, completa: ?A memória é calada?. Muita gente não entende o motivo dessa confraternização. Há quem os chame de desocupados. Triste ignorância. Convictos do ideal de servir ao País, do orgulho de representar o Brasil como legítimos embaixadores lá fora, essas poucas centenas de pessoas são sobreviventes da maior catástrofe de que se tem notícia nos meios jurídicos nacionais.
Em 10 de fevereiro de 1965, a Panair, em plena vitalidade, teve suas concessões de vôo cassadas sem aviso prévio pelo governo Castello Branco. Embasbacados com a brusquidão da medida, os representantes tentaram proteger a empresa com um pedido de concordata preventiva, que foi sumariamente transformado em falência em apenas três dias. À época, alegou-se que a companhia, que não tinha sequer um título protestado, estava quebrada. Os fatos mostravam outra coisa. Dona da oficina Celma (hoje GE), da única infra-estrutura de telecomunicações aeronáuticas da América Latina e da maior parte dos aeroportos nas regiões Norte e Nordeste, a Panair pagou todas as indenizações trabalhistas de seus funcionários em dobro em apenas três anos e, os demais credores, em quatro. Resultado: na hora de voltar às atividades, o governo baixou um decreto-lei para evitar a suspensão da falência por meio de concordata, mantendo a empresa no chão. Essa lei estava em vigor até o ano passado, um dia antes de a Panair completar 40 anos fechada. Com ela, a Varig cresceu no vazio deixado pela Panair. Sem ela, agora, pôde entrar em recuperação judicial.
Diante desse caso rumoroso, logo se delineia uma explicação para esse fenômeno chamado Família Panair. ?É uma junção de fatores: o amor, a indignação pela violência com que nos atingiram e a impotência que sentimos diante dela?, continua Cunha. Rodolfo da Rocha Miranda, filho de Celso da Rocha Miranda, o maior acionista da empresa na época do fechamento, tem seus próprios questionamentos. ?Por que FHC não enquadrou as pessoas jurídicas na legislação de perseguidos políticos? Não se pode reclamar na Justiça, nem mesmo moralmente?, lamenta. Segundo o empresário, embora esteja comprovado em juízo que a Panair foi ilegalmente fechada, os governos democráticos fazem vista grossa. ?Temos um ranço político do passado. Todos têm medo. Ninguém quer se posicionar sobre o assunto?, diz.
Embora continue no chão, a Panair não existe apenas na memória dos ex-funcionários. Em 1995, a falência foi levantada e, desde então, a empresa luta nos tribunais para que a União regularize sua pendência. São vários pedidos de indenizações: pela desapropriação da Celma, da rede de comunicações e dos terrenos de aeroportos. Isso sem contar as ações por perdas e danos e pela devolução da quantia paga indevidamente aos funcionários, que, segundo as leis trabalhistas, era de responsabilidade do governo. ?Tudo podia ser negociado. Se o governo reconhecer o que fez, só reivindicaremos o que é de direito. Nossa luta é por uma reparação moral. E acredito que os panerianos continuarão se reunindo até que finalmente seja feita Justiça?, avisa.