O clima na Alemanha às vésperas de uma Copa do Mundo raramente foi tão contido. Vários bares decidem não exibir partidas, e mais da metade da população considera ignorar completamente o evento, diz pesquisa.Há 27 anos, o bar cult Lotta, em Colônia, é ponto de encontro para momentos eletrizantes do futebol. Quando o Colônia, icônico clube da cidade no oeste da Alemanha, marca o gol decisivo nos acréscimos, é como se o bar inteiro explodisse: desconhecidos se abraçam e a cerveja rola aos litros.

E também em jogos da seleção alemã o Lotta, com seus dois televisores e um telão, é chamariz para dezenas de torcedores. Inesquecível ficou o grito coletivo de alívio após o gol de Mario Goetze na final da Copa do Mundo de 2014 contra a Argentina.

Muita coisa deve ter acontecido até que o coproprietário Peter Zimmermann, um apaixonado por futebol e sócio-torcedor do Colônia há 20 anos, chegasse à decisão que muitos outros donos de bares e restaurantes na Alemanha estão tomando nos últimos tempos: em protesto, a televisão permanecerá desligada durante toda a Copa do Mundo no Catar, de 20 de novembro a 18 de dezembro, quatro longas semanas.

Zimmermann diz: “Queremos enviar um sinal contra este sistema completamente corrupto da Fifa, onde realmente tudo gira em torno de dinheiro. E direitos humanos e a cultura do futebol não importam em nada. E no Catar ainda há mais fatores: a opressão das mulheres, a discriminação contra os homossexuais e as condições catastróficas de trabalho.”

Programa alternativo ao futebol

Quando a Copa do Mundo começar no domingo com a partida de abertura entre o Catar e o Equador, o Lotta ainda estará fechado. Na segunda-feira, quando os Estados Unidos enfrentam o País de Gales, restará aos frequentadores do bar participar de um jogo de perguntas não relativas a futebol, o tradicional pub quiz.

E na terça-feira, enquanto a França joga contra a Austrália, oorrerá no Lotta um painel de discussão sobre a situação no Catar, as políticas da Fifa e o boicote. Depois ainda haverá torneios de dardo e pebolim, exibições de filmes e a oportunidade de jogar a Copa do Mundo no Playstation. A campanha de protesto viralizou: até mesmo uma equipe de TV japonesa visitou o bar em Colônia.

“Quanto mais a Copa do Mundo se aproximava, mais nos dávamos conta de que o Catar foi a gota d'água e que não queremos apoiar isso”, diz Zimmermann. “Em abril tornamos público nosso boicote e colocamos uma faixa na fachada dizendo 'Boicote ao Catar'. As reações foram positivas em todos os sentidos, embora ainda estivéssemos em uma posição minoritária na época.”

Não há euforia na Alemanha

Pela primeira vez na vida, Zimmermann não sabe de cor o calendário de jogos do Mundial. Enquanto isso, alemães em todo o país sentem que não se trata de uma Copa do Mundo, mas de um torneio entre clubes financiados por grandes empresas, como Hoffenheim, Leipzig ou Wolfsburg.

O entusiasmo é visivelmente contido em todo o país: não se veem carros com bandeirinhas da Alemanha, álbuns de figurinhas dos jogadores ou bolões de apostas entre colegas de trabalho. E, também por acontecer no inverno europeu, nenhuma transmissão ao ar livre.

As redes varejistas de artigos esportivos da Alemanha Intersport e Sport2000 reclamam que as vendas de camisetas da Copa do Catar estão até 50% mais baixas em comparação com a Copa de quatro anos atrás. E, de acordo com um estudo recente do instituto de pesquisa de opinião Infratest/dimap, mais da metade dos alemães está considerando ignorar completamente os jogos no Catar.

Enquanto isso, o bar Lotta também removeu todas as garrafas de cerveja com o logo da Copa do Mundo. Isso gerou comentários críticos no Instagram e por e-mail, com alguns tachando os proprietários de hipócritas, pois estariam aquecendo o bar com gás do Catar.

Mas Zimmermann não se arrepende de ter feito do bar uma zona livre da Fifa. Mesmo que as vendas sofram com o boicote durante as próximas quatro semanas. “Claro, a Copa do Mundo é sempre um bom negócio extra, especialmente quando a Alemanha está jogando. Mas nós temos nossos clientes habituais e espero que outras pessoas venham aqui atraídas pelo programa alternativo. Elas dizem que gostam de futebol, mas que isso com o Catar é demais.”

“Copa do Catar é ainda mais abstrusa do que na Rússia”

Na próxima terça-feira, Dietrich Schulze-Marmeling também virá ao Lotta, mas como palestrante. O autor de numerosos livros sobre futebol poderia ser chamado de capitão da equipe de protesto. O inveterado torcedor do Borussia Dortmund lançou a iniciativa #boycottCatar2022 há dois anos. Ele também escreveu um livro sobre a controvérsia do Catar e por que a Copa do Mundo não deveria ter sido concedida ao emirado.

“Fiquei surpreso com a extensão e a intensidade dos protestos das últimas semanas, especialmente pelos torcedores nas últimas três rodadas da Bundesliga. Penso que isso se acumulou ao longo dos anos e, para muitas pessoas, a Copa do Catar é ainda mais abstrusa do que na Rússia. Muitas pessoas disseram que a Rússia era pelo menos um grande país com uma certa tradição futebolística. Mas no Catar, com seus 350 mil cidadãos, é simplesmente absurdo para muitos”, diz Schulze-Marmeling.

Importante é manter visão crítica

“Papai Noel em vez de Adidas, bolo de especiarias em vez da Fifa” é o lema da iniciativa de boicote. Todos os que aderirem ao apelo devem enviar cartas de protesto à Fifa, não comprar nenhum produto com logo da Copa do Mundo e se abster de viajar ao Catar e comparecer a fanzones na Alemanha. O nobre objetivo de Schulze-Marmeling e seus colegas: não deve continuar sendo atraente apresentar a Copa do Mundo “dessa forma pervertida e arruinar ainda mais o futebol”.

Questionado se consegue entender aqueles que acabam ligando a TV para assistir aos jogos, ele responde: “Não julgo ninguém, posso até entender muito bem. Será que todos que agora dizem que não assistirão realmente resistirão quando a Alemanha jogar?”. Segundo o autor, o importante é “não abrir mão de uma visão crítica do torneio”.

“O debate deve continuar mesmo durante os jogos, e também deve ficar claro para a mídia que as críticas não devem ser ignoradas. Precisamos de uma discussão sobre como queremos moldar o futuro do futebol.”

O crítico do Catar vê em particular a Alemanha na vanguarda desse debate, devido a sua cena de torcedores críticos, que repetidamente denunciam casos de racismo, homofobia e a crescente influência dos investidores.

Para os torcedores de muitas seleções, por outro lado, a situação dos direitos humanos e a corrupção na Fifa dificilmente importam; o futebol brilha mais do que tudo. Já há quem zombe que a Alemanha será campeã mundial pelo menos em termos de moral. Schulze-Marmeling, no entanto, não se importa com esse sarcasmo.

“Se o tema dos direitos humanos goza de um destaque especial na Alemanha, então podemos nos orgulhar disso. Quando as pessoas acusam que vivemos em uma bolha alemã, eu sempre digo: 'Desculpe, mas em outros países também está começando uma mudança de opinião, e eles tendem a olhar com certa admiração para o que acontece aqui'. Especialmente da Inglaterra, recebemos muitas perguntas dizendo: 'Como conseguiram fazer isso com os protestos? Gostaríamos de fazer isso também, podem nos ajudar?'”