10/12/2003 - 8:00
EM CAMPANHA AOS 85
Amato, no vestiário do Clube Paulistano, luta pela reeleição
Houve um momento na vida brasileira, no final dos anos 80, em que as questões nacionais pareciam mais simples do que hoje. Ao final do ciclo militar, com o País mergulhado em crise econômica e preparando-se para eleger o sucessor de José Sarney, vivia-se um clima de grandes transformações. Naquele instante único, um paulistano magro e alto, de nariz adunco e jeito meio estabanado de falar, encarnou o espírito do empresariado brasileiro. Seu nome era Mario Amato e ele presidia a Fiesp, a rica e influente Federação das Indústrias do Estado de São Paulo. Na mesma época, um jovem sindicalista barbudo, fundador de um partido de esquerda que tinha por símbolo uma estrela vermelha, representava o antônimo de Amato. Ele nasceu no mesmo dia em que nasceu Amato, 27 de outubro, mas sob outra regência astrológica: falava com a voz do operariado urbano que havia emergido confiante das greves contra a ditadura. Seu nome era Luiz Inácio da Silva, o Lula, do Partido dos Trabalhadores. Candidato à Presidência da República na eleição de 1989, o carismático líder dos metalúrgicos do ABC parecia destinado a vencer. Seu adversário era outro nordestino, Fernando Collor de Mello, um filho da elite que vinha de governar Alagoas com um programa de combate ao empreguismo estatal. Lula iria arrebatar a Presidência, mas teve um Amato no meio do caminho.
No dia 11 de outubro, uma quarta-feira, durante um encontro no prédio da Fiesp, na Avenida Paulista 1.313, Amato proferiu a frase da sua vida. ?Uns 800 mil empresários vão deixar o Brasil se o Lula for eleito?, previu diante de uma platéia de 130 empresários e uma dezena de jornalistas. Ele falava da fuga de capitais que procedeu a Revolução dos Cravos em Portugal, no ano de 1974, e antecipava que Lula causaria efeito ainda pior. ?Ninguém vai querer perder dinheiro?, explicou. A declaração explodiu como uma bomba. A esquerda recebeu o exagero como golpe sujo, enquanto a direita celebrou a ousadia propagandística de Amato. A divisão do País acentuou-se. O neto de italianos transformou-se no símbolo do conservadorismo que cercava Collor, e Lula, um reformista cristão, estigmatizou-se como esquerdista. Perdeu a eleição. Amato diz hoje que não se aliou a Collor porque gostasse dele, mas porque não via outra maneira de impedir a ascensão do PT. ?As idéias do Lula nos pareciam revolucionárias?, justifica.
Lá se vão 14 anos desses acontecimentos. São 9 horas da manhã de terça-feira 2 de novembro e Amato sobe pausadamente a rampa que leva à sua sala, na presidência do Clube Paulistano, um tradicional reduto esportivo da elite da cidade. Amato está com 85 anos e perdeu um bom pedaço da altura que o punha um palmo acima da média. ?Fiquei quatro centímetros mais baixo?, precisa. O boxeador meio-médio de 78 quilos e 1m82 que ele foi na juventude está um pouco cansado, mas não jogou a toalha. Lutador pugnaz, vai disputar em março um segundo mandato de três anos no Paulistano. Havia desistido de concorrer, voltou atrás e a disputa encruou. O resultado tornou-se incerto, embora votem apenas 201 conselheiros. ?Posso perder, posso ganhar, não sei?, especula. Aos 53 anos, Lula sobe outra rampa, a do Palácio do Planalto. Ele é o presidente do Brasil, eleito em novembro de 2002 com 53 milhões de votos. O estigma de esquerdista ficou para trás, lavado por um ano de gestão conservadora. Nenhum empresário deixou o Brasil. Ao contrário, Lula agora aparece na capa da revista americana Newsweek como o namoradinho de Wall Street. E mesmo a Fiesp, que Amato presidia, dá-se bem com o governo. Um de seus próceres, o empresário Luiz Furlan, da Sadia, ocupa o cargo de ministro do Desenvolvimento por indicação da Avenida Paulista.
GUARDA ALTA: ?Às vezes
a retórica não funciona. É
preciso se impor pela força.?
Demorou, mas Amato perdeu por nocaute a luta contra o migrante sem ranking universitário. Perdeu com a elegância do atleta aplicado que sempre foi ? no boxe, na natação, no futebol. Diz que mudou o Brasil, que Lula mudou e que ele mesmo já não é o que era. Elogia o ministro Antônio Palocci, da Fazenda, e Cristóvam Buarque, da Educação. Insiste que joga, como sempre jogou, no Brasil Futebol Clube. E que se Lula for mal, o Brasil irá mal. ?Não me arrependo do que fiz em 1989?, pondera com uma nota de incerteza na voz. ?Lula não estava preparado. Podia resultar num Hugo Chávez. Eu disse aquilo num impulso mas fui sincero. Todos na Fiesp estavam com medo. O dinheiro é covarde.? Adjetivos como esse têm peso elevado no vocabulário de Amato. Ele é um homem afeito a expressões antigas. Os espertos são ?ladinos?. Os posudos são ?poseurs?. Um sujeito fino, de boa educação, é de ?escol?, embora também possa ser ?excelso?. O oposto de pobre é gente ?de bem?. É um conservador profundo, capaz de começar um raciocínio bem intencionado sobre os problemas do Brasil com a palavra ?miscigenação?. Amato pontua suas frases com vocábulos e idéias que soam fora do tempo. O ministro da Fazenda de Sarney, o industrial Dílson Funaro, era ?uma virgem de 18 quilates, o sujeito
mais puro que conheci em toda a minha vida. Deixou tudo de lado, seus negócios, para ajudar o País?. Funaro, dono de uma personalidade ao mesmo tempo discreta e messiânica, conduziu o ministério enquanto se tratava de um câncer linfático que viria matá-lo. ?Era um santo?, diz Amato.
Em um tema, contudo, é seco como um direto de direita: o medo. ?Tenho medo de ter medo?, diz. Quando acha que algo pode dar errado, quando alguém o intimida, aí sim é que ele vai em frente, assegura. Orgulha-se de como presidente da Fiesp sempre ter participado das reuniões com sindicalistas sem estar acompanhado de capangas, de gente que o protegeria. Embora até mesmo os adversários reconheçam nele um homem emotivo e generoso, há uma tinta de violência no seu pensamento ? herança, talvez, do menino magrelo, diagnosticado como raquítico, que abriu seu lugar no mundo aos socos. Amato reconhece que José Serra portou-se como cavalheiro ao defrontar-se com Lula na eleição, mas arremata com um sorriso malicioso: ?Em política não se pode ser gentleman. O gentleman perde?. Na eleição de Collor não houve cavalheirismo. Além do upercut verbal que desferiu contra o candidato do PT, o presidente da Fiesp estava preparado para ir mais fundo. Ele conta, num episódio revelado somente agora, que no dia em que Fernando Collor e Lula fizeram o debate final na campanha de 1989, descobriu-se que o PT enviaria militantes do partido à porta do estúdio da Bandeirante, no bairro do Morumbi. ?Eu e o Antônio Rogério Magri, da CGT, arregimentamos uns caras fortes e mandamos a turba lá para a televisão, para qualquer eventualidade?, recorda Amato. ?Muitas vezes a retórica não funciona e é preciso se impor pela força.?
NA OUTRA RAMPA: Longe do
poder da Fiesp desde 1992,
orgulha-se de jamais ter
dependido do dinheiro do Planalto
Quem ouve esse ancião enérgico contar histórias na sala do Paulistano, tendo na parede atrás de si uma paisagem de Benedito Calixto, pode não perceber a influência que ele gozou a seu tempo. Amato foi talvez o mais poderoso presidente da história da Fiesp. Ou, posto de outra forma, ele a presidiu em um período em que a Fiesp era a mais poderosa entidade da plutocracia brasileira. Em sua sala os políticos entravam atrás de apoio e dinheiro. Para ali convergiam os sindicalistas em busca de interlocução. Amato foi recebido em Brasília por sucessivos presidentes, que lhe pediam conselhos e favores. Tinha apoio dos seus pares. Falante, agressivo, desastrado a ponto de ser folclórico, mas sempre presente, Amato deu à pirâmide da Paulista, que já era um marco, uma visibilidade que ela não tivera antes e não viria a ter depois. Era onipresente na mídia e falava com Roberto Marinho periodicamente. Suas gafes tornaram-se famosas ? disse que a ministra Dorothéa Werneck era inteligente, apesar de ser mulher ? assim como os bate-bocas com os governos.
Seu mandato na Fiesp, entre 1986 e 1992, coincidiu com o final da ditadura, com a instalação da Constituinte e com a primeira eleição direta depois de 1964. Em seu período nasceram e morreram os planos Cruzado (1986), Bresser (1987) e Collor (1990), enquanto a inflação grassava. Embora não fosse particularmente culto ou articulado, e nem tivesse atrás de si um sobrenome patrício, liderou sem contestação o arrogante empresariado paulista. ?Não tenho jactância por isso?, diz o protagonista. ?Era o tempo e o momento. Fui o ho-
mem certo na hora certa.? Um ano e pouco atrás, Amato soube de uma história que ilustra a sua proeminência no período. Corria o ano de 1991, a economista Zélia Cardoso de Mello acabara de ser apeada do poder e Collor despachou Jarbas Passarinho a São Paulo para arranjar um ministro da Fazenda em 24 horas. Amato estava no topo da lista. O ministro Passarinho ligou na sua residência e no trabalho insistentemente, mas não encontrou o amigo. Ele fazia cooper no Paulistano e perdeu a vaga para o ex-embaixador Marcílio Marques Moreira. ?De qualquer forma não aceitaria?, diz hoje. ?Não estava preparado para a função.?
Que Collor tivesse lembrado dele é surpreendente. Os dois tinham uma longa história de trombadas. No início de 89, quando o Caçador de Marajás ainda não havia se tornado um promissor anti-Lula, houve uma reunião com ele na casa de um empresário paulista. Há duas versões para o que ocorreu ali. Na primeira, Amato teria exigido promessas e ouviu um rotundo não. Na outra, contada por Amato, ele teria dito que Collor não tinha a menor chance e o candidato amuou-se. ?Achava a candidatura caricata?, conta. Mais tarde, em uma reunião pública na Fiesp, já firme nas pesquisas, Collor teria dado o troco: disse que não queria o apoio dos empresários. ?Eu respondi na hora?, lembra. ?Disse que só votaria nele por falta de alternativa.? Meses depois a disputa voltou às páginas dos jornais. Corria agosto de 91 e Amato queixou-se a jornalistas que a situação das empresas era ?catastrófica?. O então presidente Collor reagiu chamando-o de ?impatriótico?. Fizeram as pazes numa reunião formal em Brasília e, a partir daí, aproximaram-se. Amato orgulha-se de que prepostos do presidente passaram a consultá-lo em questões-chaves da economia: ?O Collor mesmo não telefonava, mas eu sabia que as perguntas partiam dele?.
Foi o mesmo roteiro da relação com Sarney. Depois de ser chamado de ?Bakunin? pelo presidente ? e de correr à enciclopédia para saber quem fora o anarquista russo ?, Amato respondeu lançando uma vodca do mesmo nome. Pouco depois foi levado ao Torto para uma reunião apaziguadora. Ali falou mal do esquerdismo da Constituinte e do risco de o País tornar-se ingovernável. Sarney adorou. Disse que o poder para pressionar deputados era dele, na Fiesp, e o convidou a agir. Amato tornou-se freqüentador do Planalto e mergulhou fundo na articulação do Centrão, o bloco moderado que passaria a dar o mote na redação da Carta. ?Dormia três vezes por semana em Brasília?, conta. O jogo era bruto. Nessa época, perplexo com o assédio materialista dos políticos, ele desabafou com um amigo durante almoço no antigo restaurante Pensilvânia, na Avenida Paulista: ?Essa gente não vale nada?. Confrontado com esse relato 16 anos depois, Amato esquiva-se: ?Não me lembro?. O senador Sarney guarda até hoje boas memórias do amigo-adversário. ?Gosto muito do Mario?, diz ele. ?Era com ele que eu dirimia dúvidas sobre as classes produtoras.? E revela: ?Adorei quando ele quis lançar a vodca Bakunin?.
A trajetória pessoal de Amato coincide com os ciclos da fortuna da indústria paulista. Ele comecou a trabalhar aos 14 anos, depois que seu pai, até então um próspero alfaiate, faliu. Aos 40 já estava na Fiesp, depois de ampliar o negócio de cortiça do sogro. Nos anos 80 já tinha 14 empresas e a venda de apenas uma delas ? a Drury?s, fabricante de bebidas ? rendera-lhe o equivalente a US$ 12 milhões. ?Se não fosse empreendedor ficaria vivendo de renda e teria mais dinheiro do que tenho hoje?, contabiliza. Que fique bem claro que Amato é um homem rico. A holding Springer, da qual é acionista, participa de um punhado de empresas e a parte dele vale algo entre R$ 12 e R$ 15 milhões. Se desde os anos 80 a indústria tivesse crescido como cresceram os bancos, ele teria muito mais. Mas
não. Nesse período a indústria encolheu e foi desnacionalizada, exatamente como ocorreu com os negócios de Amato. Amato já
teve 12 mil empregados e hoje tem 3,2 mil. Quando se olha a trajetória da economia percebe-se que não é por acaso que Lula
está em Brasília enquanto Amato, assim como outros ex-presiden-
tes mais jovens da Fiesp, administram interesses menores. Nesse período o poder mudou de mãos.
Um sinal de que isso ocorreria foi dado em 18 de março de 1991. Naquele dia, em meio a uma brutal recessão, Amato dirigiu-se de Opala preto a um sobrado na Vila Mariana onde funcionava o ?governo paralelo? do PT, montado para fiscalizar Collor. Queria ?trocar figurinhas?. Foi recebido por um Lula em terno e gravata e subiu ao andar de cima para conversar com um grupo de petistas. Lembra que um sujeito exaltou-se, aproximou-se e ele temeu que tivesse de se defender fisicamente. O sindicalista Vicente Paulo da Silva, interveio indignado e a reunião transcorreu respeitosa. ?É o reconhecimento do Lula?, sentenciou o mesmo Vicentinho ao final, com um olho lá longe, no futuro. ?O empresariado está percebendo nele uma esperança para o País. É o primeiro passo.? Naquela conversa informal, sem que Mario Amato pudesse perceber ou Lula conseguisse antecipar, deu-se a passagem de bastão que mudaria a história do Brasil.