Subsolo da floresta é rico em potássio, essencial para reduzir dependência do Brasil de fertilizantes importados. Mas exploração preocupa ambientalistas e vem sendo marcada por licenciamentos controversos.A densa floresta, os igarapés e os rios que fluem silenciosos nos arredores do município de Autazes, no estado do Amazonas, escondem fenômenos invisíveis à primeira vista. Um deles é o potássio, mineral que pode ser encontrado no subsolo, a 800 metros de profundidade. O recurso usado como base para a produção de fertilizantes simboliza a promessa para reduzir a dependência do país de adubos importados – especialmente após a invasão da Ucrânia pela Rússia, em 2022.

Outro “fato invisível” é a complexa teia de interesses econômicos, políticos e as ameaças ambientais decorrentes da exploração do mineral.

O potássio promete alavancar o agronegócio brasileiro. Mas, para retirá-lo do solo, a empresa Potássio do Brasil, subsidiária da canadense Brazil Potash Corp, precisa perfurar áreas inteiras de florestas intocadas. Estima-se o acúmulo de pelo menos duas pilhas de rejeitos com quase 80 milhões metros cúbicos só de resíduos descartados, sem uso posterior. O volume foi comparado à altura de dois prédios de oito andares. Cientistas e ambientalistas alertam que, com a retirada desse mineral do subsolo, áreas inteiras podem afundar.

Nos arredores das futuras instalações desse projeto, vive a comunidade de indígenas do Lago do Soares e Urucurituba, que aguarda, desde 2003, a demarcação oficial de seu território pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Cerca de 200 famílias da etnia mura estão na aldeia Soares. Conhecidos pelas suas habilidades na navegação, os indígenas mura ocupam a região dos rios Madeira, Amazonas e Purus há pelo menos um século.

“Nos pontos onde as perfurações já aconteceram, boa parte da floresta foi derrubada – e para garantir o acesso às áreas exploradas será necessário desmatar ainda mais”, alerta o tuxaua (liderança tradicional) Filipe Gabriel, de 27 anos.

Há dois anos, ele está em pé de guerra com a Potássio do Brasil, a empresa responsável pelo projeto. Passou a enfrentar pressões internas, vendo lideranças locais se alinharem aos interesses da mineradora, e já foi alvo de ameaças. O temor de Filipe é que a sua aldeia acabe soterrada antes mesmo de ser reconhecida oficialmente como território indígena.

Investigações

Entre março e abril, a reportagem da DW percorreu Autazes e as áreas próximas ao município que fica a cerca de 260 km a sudeste da capital amazonense.

O percurso é feito de carro, balsa e o último trecho, até o Lago de Soares, com uma pequena embarcação local (voadeira). Quem navega pelos igarapés de Autazes, e nas áreas próximas dos locais onde a empresa pretende implementar o projeto, pode estranhar como búfalos, cada vez mais presentes na região, foram parar em áreas cercadas por rios de fortes correntezas e profundos lagos. Os animais dificilmente atravessariam os rios nadando.

Segundo o biólogo Lucas Ferrante, que atua no Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia (Censipam), há um processo de grilagem – tomada de posse de terras com falsos títulos de propriedade – com a introdução desses animais em certas áreas. A grilagem, de acordo com Ferrante, também fortalece o crime organizado, como o Primeiro Comando da Capital (PCC).

O biólogo acrescenta que os pecuaristas estariam negociando essas terras diretamente com a Potássio do Brasil, uma vez que não conseguiram adquiri-las diretamente de outros indígenas. “Nós vemos uma organização criminosa atuando na grilagem de terras, que inclusive tem invadido a região de Autazes, invadindo terras indígenas, e disseminando búfalos nessas áreas griladas”, disse à DW Brasil o também colaborador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa).

“Estamos falando de uma articulação do crime organizado diretamente com a Potássio do Brasil para ter acesso a áreas indígenas na Amazônia, o que agrava ainda mais. É uma empresa que, de fato, tem adquirido isso de maneira criminosa”, acrescentou.

Questionado pela DW Brasil, o Ministério Público do Amazonas disse que investigações nestes casos são sigilosas. A reportagem também procurou a empresa Potássio do Brasil para questionar se reconhece as acusações, como tem sido a aquisição de terras para o projeto, e como controla todas as etapas desse processo. A empresa não respondeu ao pedido de esclarecimentos da reportagem até a conclusão da matéria.

Mas, segundo Ferrante, “o Brasil está abrindo uma das áreas mais conservadas, um dos últimos blocos de floresta intocada no meio da Amazônia, acelerando uma nova fronteira do desmatamento – e nós temos vários estudos publicados sobre isso – justamente para facilitar a exploração”.

Ferrante destaca ainda que sua equipe pesquisa uma alternativa sustentável: o uso de microrganismos capazes de fixar potássio no solo, o que pode tornar a atual forma de extração de potássio obsoleta em apenas cerca de dez anos.

“Até esse potássio começar a ser explorado vão alguns anos e, até lá, nós já teremos essa biotecnologia em mãos, o que dispensa esse trabalho retrógrado que viola o direito dos povos indígenas e que ameaça a Amazônia através das ações da Potássio do Brasil nesse território”, disse.

Licenciamento controverso

Atualmente, a empresa avança com o projeto de extração de potássio do solo para a produção de fertilizantes químicos.

A Brazil Potash Corp, ligada ao investidor Stan Bharti e ao banco Forbes & Manhattan, pretende explorar potássio em mais de um milhão de hectares entre Autazes e Óbidos, no Pará. Isso significa que a expansão desse projeto para além dos arredores de Manaus poderá ter impactos ambientais em uma grande área de floresta na Amazônia, abarcando vários estados, além do Amazonas.

MAPA

Porém, desde 2015, o Ministério Público apura irregularidades no licenciamento ambiental do projeto, denúncias de ameaças de morte, cooptação de lideranças indígenas, assédio e a compra de terras sob coação nos arredores de Autazes.

Anunciado no município há mais de dez anos, o projeto da Brazil Potash Corp. para construir uma mina de potássio já tem as obras iniciadas. Os moradores nos arredores das futuras instalações relataram à DW Brasil que há o movimento de embarcações e que parte da área começou a ser desmatada.

Porém, isso acontece sem as licenças do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), órgão federal. Através do órgão estadual Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam), a empresa obteve o licenciamento ambiental fracionado, relata o advogado que representa a comunidade. Foram licenças individuais separadas para diferentes partes do projeto, como a construção de estradas e depósitos de rejeitos, em vez de uma licença emitida pelo Ibama.

A DW Brasil entrou em contato com o Ibama e questionou por que o órgão não é o responsável pelo licenciamento ambiental, considerando que se trata de um projeto de interesse nacional. Em resposta, o Ibama afirmou que se baseia no artigo 7º da Lei Complementar nº 140/2011, segundo o qual sua atuação seria obrigatória apenas caso as instalações impactassem diretamente terras indígenas. Por esse motivo, como são áreas em demarcação, declarou que “não se verificam as características que justificariam a atuação do órgão”.

Mas a abstenção do Ibama no licenciamento tem sido questionada pela Justiça. Em 2023, a justiça do Amazonas suspendeu o licenciamento ambiental, alegando que a competência era do Ibama, e não do órgão estadual Ipaam. No ano passado, porém, o Tribunal Regional Federal (TRF1), reverteu a decisão, fortalecendo o Ipaam no impasse que se arrasta há cerca de dez anos.

“A gente sabe que por costume – um costume triste –, os órgãos estaduais tendem a ser muito mais propensos a liberar licenças de qualquer jeito do que o federal, e é o que está acontecendo aqui. Há violações crassas, licenciamento feito de qualquer maneira, cheio de irregularidades pelo órgão estadual”, disse à DW Brasil o procurador Fernando Merloto Soave.

Comunidades não teriam sido consultadas

Outro imbróglio no licenciamento ambiental é o fato de as comunidades mais impactadas pelas futuras instalações do projeto não terem sido ouvidas, segundo explicou à DW Brasil o MPF do Amazonas. A consulta às comunidades do entorno é uma diretriz da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

O advogado do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), João Vitor Lisboa Batista, que representa as comunidades Lago do Soares e Urucurituba, diz que “o maior desafio tem sido provar que a consulta realizada não foi válida porque as pessoas que deveriam ser ouvidas foram ignoradas”.

Segundo o advogado, a estratégia da empresa Potássio do Brasil foi deslocar a área do empreendimento para os locais em processo de demarcação, como Lago do Soares e Urucurituba, já que a Constituição Federal proíbe mineração em terras indígenas. Segundo a liderança indígena Filipe Gabriel, com frequência diz-se na região que “se a terra não está demarcada é porque não tem indígenas, então se pode explorar, porque não tem donos”.

Mas o MPF questiona esse argumento e explica que “não se pode minerar em cima desses territórios, estejam eles demarcados ou não”, diz o procurador Fernando Merloto Soave. “O que faz o território existir, ou não, é seu uso tradicional. Delimitar ou demarcar é papel burocrático do governo”, acrescenta.

Atuação da Funai

No início de abril, a Funai visitou a aldeia Lago do Soares, com os primeiros apontamentos para a delimitação do território. Uma terceira visita deste órgão que realiza estudos para identificar, delimitar, demarcar e registrar as terras indígenas será realizada em setembro deste ano.

Se a área do Lago do Soares for demarcada como terra indígena pela Funai, o Ibama deve intervir (de acordo com a Constituição) e isso implicaria, explicam os advogados, em um processo de licenciamento ambiental mais minucioso sobre os impactos ambientais do empreendimento.

Enquanto isso, a empresa já atua em Urucurituba e movimenta seus maquinários pelos territórios, relatam moradores no local. Segundo consta no site da Potássio do Brasil, “o povo mura de Autazes, composto por 36 aldeias e representado pelo Conselho Indígena Mura (CIM), seguiu integralmente o Protocolo, com 94% das aldeias aprovando o projeto, superando o quórum mínimo de 60% exigido”.

As controvérsias não param por aí. O MPF também investiga pagamentos de subornos de cerca de R$ 10 mil a lideranças indígenas para que apoiassem projeto.

Outra questão apontada pelo MPF é a denúncia de que terras estariam sendo vendidas sob coação. Em alguns casos, os contratos incluíam cláusulas de confidencialidade que impediam os vendedores nas comunidades de revelar qualquer informação sobre as transações.

Interesse nacional e segurança alimentar

Diante das críticas, a Potássio do Brasil e o governo federal defendem o projeto para explorar potássio em Autazes como estratégico para os interesses nacionais, inclusive para garantir a segurança alimentar no país e no exterior. Isso porque a guerra entre Rússia e Ucrânia afetou o fornecimento global do mineral, e o Brasil, que importa 96% do insumo – principalmente da Rússia, Canadá e Belarus –, busca reduzir sua dependência externa. A produção local diminuiria custos de transporte e tornaria os fertilizantes mais acessíveis.

Segundo a empresa relata em seu site, o projeto prevê uma produção anual de 2,4 milhões de toneladas de potássio, o que poderia suprir 20% do consumo nacional e fortalecer o agronegócio ao garantir um fornecimento estável. Atualmente, antes mesmo de completamente finalizado, o projeto gera lucros. Em novembro de 2024, obteve US$ 30 milhões com uma oferta pública inicial de ações (IPO) na Bolsa de Valores de Nova York.

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A repórter viajou a Autazes no âmbito do projeto para jornalistas do Instituto para Democracia, Mídia e Intercâmbio Cultural (IDEM)

Colaborou com esta reportagem a jornalista Ulrike Fischer-Butmaloiu