O artigo 166 da Constituição define que cabe ao Congresso Nacional propor, analisar e aprovar o Orçamento público. Desde que a Carta Magna foi escrita, essa obrigação republicana tornou-se ferramenta de barganha. Mas foi no governo Jair Bolsonaro que ela chegou ao seu nível mais baixo. Em meio à pandemia, as exigências financeiras dos parlamentares foram completamente desconectadas da realidade do País, enquanto a inabilidade do governo em negociar fez da discussão do Orçamento uma obra de arte surrealista. Com atraso, desleixo, e sem planejamento, um acordo saiu a fórceps. Nasceu com problemas estruturais gigantescos. Ao fazer com que R$ 125,9 bilhões das despesas ligadas à pandemia não entrassem no teto de gastos, Bolsonaro, o ministro da Economia Paulo Guedes e o presidente da Câmara Arthur Lira pensaram que a manobra os deixaria imunes à Lei de Responsabilidade Fiscal. Se enganam. Há pelo menos outros R$ 39,7 bilhões em despesas de custeio que não estão isentas e que não cabem no Orçamento deste ano. Ou seja, uma pedalada parece inevitável. Além disso, a Câmara aprovou, no mesmo dia do acordo, outros dois projetos que liberam mais gastos para o governo e colocam o Brasil na vanguarda do mundo ao criar um Anarquismo de Estado.

Quem afirma que o Orçamento já nasce com R$ 39,7 bilhões no vermelho é Marcos Mendes, economista, pesquisador e associado do Insper. Ele analisou as contas públicas e as projeções realizadas pelos poderes Executivo e Legislativo. Para chegar a esse rombo de quase R$ 40 bilhões, Mendes partiu do limite de despesas fixado pelo teto de gastos (que é de R$ 1,485 trilhão) e listou as despesas obrigatórias. Ele considerou inclusive os valores subestimados neste Orçamento, que somam R$ 28,8 bilhões com despesas previdenciárias e subvenções econômicas, e também residuais do ano anterior. Com isso, o governo teria disponibilidade de R$ 49,3 bilhões para as demais despesas, mas precisaria de pelo menos R$ 89 bilhões, considerando o padrão de gastos com despesas de custeio e investimentos feitos no ano passado. “O cancelamento de emendas parlamentares não-obrigatórias poderia diminuir o tamanho do buraco”, disse. Para conseguir fechar a conta, será preciso passar a tesoura. Dependendo de onde os cortes ocorrerem, poderão inviabilizar a operação de serviços e da máquina pública.

AUSTERIDADE PARA INGLÊS VER A sensação de frustração com o acordo que, além de tornar meramente fictício o teto de gastos, ainda garante ao Congresso R$ 37 bilhões em emendas, não agradou nem os técnicos mais próximos a Paulo Guedes. Três pessoas próximas ao ministro ouvidas pela DINHEIRO confirmam que há descontentamento com os caminhos que a pasta tem tomado. Um assessor garantiu que o ministro lutou até o fim por um Orçamento verdadeiramente liberal, enquanto os outros dois disseram que ele já havia “entregado o jogo” há algumas semanas. “Ele realmente só não quer ser responsabilizado legalmente por algum erro”, disse.

NA RETA FINAL Governo e Congresso firmam acordo sobre Orçamento às vésperas da data limite do projeto de lei das diretrizes perder a validade. (Crédito:Pablo Valadares)

Na madrugada da quarta-feira (21), véspera da sanção presidencial, Paulo Guedes mal dormiu. Enquanto o Congresso costurava o acordo, o ministro tentava, pela última vez, parir o lado liberal de seu chefe. Mas foi em vão. Depois de acertada a negociação, Guedes teria se recusado a atender uma ligação do deputado Arthur Lira (PP-AL), o mesmo que dias antes teria feito uma ameaça velada ao governo caso houvesse veto ao Orçamento. “Não dá para ficar nas mãos deles. Desse parlamentarismo no armário. Não dá”, disse a seus mais próximos assessores. Essa visão havia sido compartilhada também com o presidente semanas antes. “Eles querem te derrubar. E vão usar meu ministério para isso”, teriam sido as palavras de Guedes a Bolsonaro.

Se nos bastidores a fala é de desapontamento, sob os holofotes ela se torna mansa. Depois de dizer que a proposta enviado pelo relator Márcio Bittar (MDB-AC) era “inexequível”, Guedes tratou de ressaltar que o acordo tornou-o “exequível”. Isso porque os deputados e senadores abriram mão de R$ 9 bilhões em emendas (dos iniciais R$ 46 bilhões para os atuais R$ 37). Segundo Guedes, isso foi resultado de uma negociação republicana que garante as premissas básicas de um Estado comprometido com o equilíbrio fiscal. “Os gastos recorrentes continuam sob o teto, exatamente porque exprimem esse compromisso.” Com o acordo, ficou definido que o déficit para 2021 fica em R$ 247,1 bilhões, sem contar os custos da dívida pública.

“Os gastos recorrentes continuam sob o teto, porque exprimem esse compromisso do governo com austeridade” Paulo Guedes, Ministro da Economia.

Para Guedes, outro exemplo do comprometimento do governo com a responsabilidade fiscal da União se deu por meio do único veto do presidente Jair Bolsonaro ao texto enviado pelo Congresso para sanção presidencial. Bolsonaro barrou o trecho da Lei de Diretrizes Orçamentárias que dispensava a adimplência de municípios com até 50 mil habitantes em cadastros ou sistemas de informações financeiras, contábeis e fiscais como condição para o recebimento de transferências voluntárias. Para vetar o item, o presidente seguiu recomendação do Ministério da Economia. Segundo a pasta, o trecho retira “relevante medida de finança pública voltada para a responsabilidade na gestão fiscal”. Cerca de 88% dos municípios brasileiros têm menos de 50 mil habitantes.

O presidente Lira, da Câmara, também entendeu, sarcasticamente, o acordo como uma vitória do povo brasileiro e chegou a dizer que “questionar o Orçamento neste momento de pandemia é injustificável”. Para o deputado, o acordo foi feito em bases sólidas e o resulto se deu após uma negociação poderada e que visava o melhor para o Brasil.

REGRAS PARA QUÊ? Outros temas aprovadas pelo Congresso na terça-feira (20) passaram despercebidas na calada da noite. E podem complicar as contas públicas, segundo especialistas. Um deles é o Projeto de Lei nº 2 (PLN 2/2021), que permite a abertura de créditos extraordinários no Orçamento da ordem de R$ 35 bilhões, sem que sejam adotadas medidas compensatórias, tais como corte de outras despesas ou elevação de receitas. Apesar do objetivo de ser usado apenas para ações específicas de combate e controle da pandemia ou para programas de socorro às empresas como o BEm (Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda), e o Pronampe (Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte), ele abre um precedente gigantesco para a terra arrasada das contas públicas brasileiras.

Segundo César Augusto Marchioni ,o doutor em finanças e tributação de contas públicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro e diretor de política econômica do Banco Central, a medida, ainda que em caráter emergencial, é mais um “puxadinho” à moda brasileira. “Havia outras formas de se conseguir esse recurso sem abrir crédito”, disse. Entre as soluções, a redução das emendas e congelamento temporário de aumentos e privilégios dos poderes teriam efeitos mais efetivos. “Outras nações, como Inglaterra, Alemanha e Nova Zelândia adotaram medidas similares”, disse Marchioni. Para o ex-diretor do BC, o Congresso fez outro “malabarismo” ao derrubar um veto feito em 2009 pelo então presidente Lula que impedia a reestruturação de cargos dentro da Receita Federal com elevação de salários de funcionários de nível. Como resultado, cria-se um gasto corrente adicional da ordem de R$ 3 bilhões. “Esse número pode dobrar a cada cinco anos”

“Fiquei satisfeito com o resultado. Questionar o Orçamento neste momento de pandemia é injustificável” Arthur Lira, Presidente da Câmara.

Para Felipe Salto, diretor do Instituto Fiscal Independente (IFI), a brecha aberta com a liberação extraordinária de crédito atrapalha diretamente o controle das contas públicas. “Na prática isso dificulta a transparência e não ajuda em nada. Deveria mudar a meta do resultado primário, sinalizando alteração no fato previsto, mas optaram por descontar da meta do primário, o que é bastante questionável do ponto de vista contábil”, disse. Para ele, agora teremos dois indicadores distintos, um que trará do resultado primário e outro efetivo de gastos. “Isso só aumenta a complexidade das contas públicas que já é espinhosa”.

Ainda que o ministro Paulo Guedes tenha conseguido desviar do cheque em branco que o estado de calamidade liberaria para gastos do governo, o Congresso Nacional seguirá elevando as despesas com total desprezo às contas públicas seguindo o ritmo de Jair Bolsonaro que, muito aquém da faixa presidencial que carrega, nunca deixou de lado seu estigma de deputado federal.

PODERIA SER DIFERENTE

Leticia Moreira

Existem caminhos para preservar o teto de gastos que não foram discutidos no Congresso. Um deles é redirecionar R$ 10 bilhões que seriam destinado ao Bolsa Família, aproveitando que seus beneficiários receberão auxílio emergencial. Outra ideia seria transferir um montante, algo em torno de R$ 5 bilhões, das despesas livres da saúde, orçadas em R$ 16 bilhões, para créditos extraordinários. Também haveria espaço para executar um volume menor das despesas livres, reduzindo esse montante em R$ 10 bilhões, e viabilizar uma mudança do regime do auxílio-doença, que permitiria uma folga de R$ 5 bilhões no Orçamento. No Congresso é até aventada a possibilidade de que os benefícios sejam pagos pelos empregadores em troca de renúncias fiscais. Porém, isso precisa de aprovação em formato de lei e eleva o risco do endividamento público. “Seria mais uma forma de contabilidade criativa”, afirmou o economista Marcos Mendes, associado do Insper.