18/10/2022 - 10:25
Pesquisas feitas em vários países que usam o aplicativo, citado pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) no debate da Band do domingo passado como solução para alfabetização, mostram que ele não tem nenhum efeito na aprendizagem se for usado pelo aluno sozinho.
O Graphogame é um jogo para celular que relaciona letras aos seus sons; em uma das atividades, a criança precisa jogar uma bomba de canhão na resposta que considera certa. Especialistas ouvidos pelo Estadão são unânimes em afirmar que um aplicativo não pode ser encarado como uma política de alfabetização porque somente o professor – com diversas ferramentas e metodologias – consegue ensinar uma criança a ler e a escrever.
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O Graphogame foi desenvolvido por uma empresa finlandesa e o Ministério da Educação (MEC) pagou R$ 274,5 mil para a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) para que fosse traduzido para o Brasil em 2020. Segundo o Diário Oficial da União, o MEC não fez licitação usando a justificativa de “contratação de instituição brasileira incumbida estatutariamente da pesquisa, do ensino ou do desenvolvimento”.
O ministro era Milton Ribeiro, que no lançamento do programa disse que as crianças deveriam ficar “no máximo quinze minutos por dia” no aplicativo. Ribeiro foi preso e depois solto por suspeita favorecer municípios em verbas da educação a pedido de pastores, como denunciou o Estadão. Procurada, a assessoria de imprensa do MEC informou que o aplicativo é “uma ferramenta de apoio à alfabetização, que complementa, e não substitui, a atuação dos professores em sala de aula.”
O aplicativo passou a ser incentivado pelo MEC para ser usado por escolas e pelas famílias durante a pandemia de covid-19 e hoje faz parte do programa de alfabetização oficial, chamado “Tempo de Aprender”. O governo, no entanto, não realizou formações para que professores pudessem aprender a utilizá-lo em sala de aula – há apenas um manual para ser baixado no site no ministério. O MEC alega que “por ser um jogo de uso fácil e intuitivo, não é preciso realizar um curso específico para formar os professores e demais usuários.”
Estudo feito por pesquisadores noruegueses e publicado na revista científica Reading Research Quarterly em 2020 mostra que o Graphogame não tem “nenhum efeito significativo” na leitura de palavras se usado pela criança sozinha. A análise considerou 28 estudos sobre o aplicativo e concluiu que ele tem efeito positivo leve apenas quando há “alta interação com adultos”, sugerindo o uso em sala de aula. Segundo informações do site da Graphogame, a ferramenta foi adotada por escolas em países como Finlândia e França, mas também na Guatemala, Peru, Bolívia, Zâmbia e Venezuela, por meio de parcerias com organismos internacionais.
No debate da Band deste domingo, 16, ao ser questionado como resolver o déficit da alfabetização após a pandemia, Bolsonaro afirmou que foi contra a “garotada” ficar dois anos em casa. E em seguida disse: “vamos aos fatos, nós já estamos fazendo. O nosso ministro da Educação tem um aplicativo, que foi aperfeiçoado, que está há um ano em vigor, chama-se Graphogame. Ou seja, em um telefone celular, baixa o aplicativo, e a garotada ficar assim, letra A, aparece o som de A”. O candidato a reeleição completou ainda que “no tempo do Lula, a garotada levava três anos pra ser alfabetizada”. “Agora, no nosso governo, leva seis meses”, afirmou. Segundo especialistas, o tempo considerado ideal para a alfabetização plena é de até dois anos (1º e 2º anos do fundamental).
As crianças brasileiras em fase de alfabetização tiveram a maior queda de aprendizagem entre todas as séries avaliadas em 2021 por causa da pandemia. Aos 7 anos, no 2º ano, muitas não conseguem ainda localizar uma informação explícita no final de um texto curto, de duas linhas, segundo resultados do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), divulgados em setembro. Dobrou ainda porcentagem de alunos que estão nos níveis mais baixos de desempenho em leitura e escrita, de 15% para 34%. São crianças que sequer conseguiram responder à prova e outras que não são capazes de relacionar o som de uma consoante ao seu formato escrito.
“Não é possível achar que um aplicativo é uma política pública em momento trágico que o País está vivendo na educação depois da pandemia”, diz o professor de educação e ciência da computação da Universidade Columbia, em Nova York (EUA), Paulo Blikstein, ao comentar a fala do presidente no debate. O especialista brasileiro estuda soluções tecnológicas para o ensino e diz que a gameficação (uso de jogos) deve ser inserida apenas em alguns momentos, mas em “nenhum lugar do mundo é espinha dorsal do sistema de educação”. Isso porque, segundo ele, os aplicativos podem ajudar apenas a memorizar o som das letras e ainda se tornam cansativos depois de um tempo. “O app não ajuda a entender um texto, escrever parágrafos, redações, desenvolver argumentos. Isso quem faz é o professor.”
Blikstein ainda questiona por que este aplicativo foi o escolhido pelo governo, já que há tantos no mercado, e como os dados das crianças estão sendo usados. “Os dados estão indo para fora do Brasil? Estão seguros?”, questionou. Procurado, MEC disse que “as informações dos usuários são armazenadas em razão da Lei Geral de Proteção de Dados” e que já foram feitos 1,7 milhão de downloads do aplicativo.
O secretário de educação de Sobral, no Ceará, Hebert Lima, cidade que é exemplo no País de alfabetização, diz que avaliou o aplicativo Graphogame e decidiu não p usar. “Você pode deixar a crianças meses ou anos usando o app e ela não vai ser alfabetizada”, disse Lima. Ele explica que para aprender a ler e escrever os alunos precisam de aulas presenciais, professores qualificados, atividades lúdicas diversificadas, rodas de leitura.
Lima ainda critica a forma como o aplicativo apresenta os conteúdos. “A interface do jogo traz alguns aspectos ruins, a ergonomia não é boa, há mensagens nada lúdicas, como o canhão atirando”. Além do canhão, há letras em balões e em telas de cinema. A criança ouve o som e precisa clicar na letra correspondente. Sobral também usa uma aplicativo como uma ferramenta adicional, desenvolvido pela própria cidade, para ajudar na alfabetização.
O especialista em linguagem e alfabetização Renan Sargiani, que trabalhou na Secretaria de Alfabetização do MEC do governo Bolsonaro até o fim de 2019, também discorda que o aplicativo possa ensinar estudantes a ler e a escrever. “A criança consegue estabelecer a relação entre letras e som em um ano, mas alfabetização não é só isso, envolve apreço pela leitura, vocabulário, repertório, conhecimento”, diz ele, que deixou o governo após divergências sobre o uso político do programa de alfabetização.
“A resposta do Bolsonaro no debate revela ignorância sobre o que é política pública educacional, descaso com professores e seu papel central na garantia da aprendizagem dos alunos e completo desconhecimento da gravidade da situação da educação no País”, completa a presidente executiva do Todos pela Educação, Priscila Cruz. Além dos resultados ruins na alfabetização, dados do governo federal indicam que 23% das escolas públicas do País não têm acesso a internet e 58% não têm Wi-Fi. Há ainda 13% das escolas sem computadores. O governo Bolsonaro vetou, durante a pandemia, projeto de lei aprovado pelo Congresso para financiar internet para professores e alunos vulneráveis.
Para a professora da pós-graduação da Universidade de São Paulo e especialista em alfabetização Silvia Colello, o aplicativo não favorece o direito das crianças se expressarem. “As letras entram como pura associação com o som, alfabetização e a formação de hábitos leitores tem que acontecer por meio da literatura e de contextos significativos para a criança, como escrever uma cartinha, contar sua história”. Para ela, aplicativos como o Graphogame servem para “engrossar o caldo do analfabetismo funcional do País”.
O pesquisador responsável pelo desenvolvimento da ferramenta no Brasil na PUC-RS, Augusto Buchweitz, indicado pelo governo Bolsonaro para o Conselho Nacional de Educação (CNE), afirmou em documentos que a ferramenta sozinha “não irá alfabetizar a criança e não resolve esse imenso problema; não é esse o objetivo e nem poderia ser.” Buchweitz, especialista em neurociência cognitiva, era professor da PUC-RS até o começo de 2022 e agora está na Universidade de Connecticut. Procurado, ele não respondeu à reportagem.
A PUC-RS afirmou ao Estadão que participou, por meio de um projeto multidisciplinar, da adaptação do aplicativo ao português. “A universidade compreende que o aplicativo pode vir a ser uma ferramenta de apoio, mas que um jogo sozinho não é capaz de alfabetizar. Este não foi e não é o objetivo da iniciativa. Para uma criança ser alfabetizada ela precisa de instrução sistemática e consistente, precisa de vivências e sem dúvida alguma do apoio e presença de educadores”, informou.