A julgar pelos números, o sistema de arbitragem introduzido no Brasil há 25 anos para dar celeridade às disputas empresariais é hoje um sucesso absoluto. De acordo com dados fornecidos pelas câmaras arbitrais de todo o País, só no ano passado havia 1.047 casos em andamento, com cerca de R$ 400 bilhões em litígio, o que torna o Brasil o segundo maior mercado do mundo para advogados especialistas na área. Como afirmou recentemente o ministro do Superior Tribunal de Justiça e corregedor nacional de Justiça Luis Felipe Salomão em evento sobre o tema realizado em Brasília, “hoje temos a arbitragem consolidada no Brasil, um caso de sucesso no mundo”. Ainda segundo ele, “isso desperta muito interesse, tanto da comunidade econômica quanto da jurídica”. Um mergulho mais profundo nesse aparente sucesso, contudo, revela a existência de um lado obscuro e, ao menos do ponto de vista ético, questionável de quem atua com arbitragens no Brasil.

Introduzido no País pela Lei 9.307, sancionada pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso em setembro de 1996, esse sistema de conciliação de conflitos prevê que “pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais”. O mesmo vale para a administração pública direta e indireta. Ou seja, em vez de recorrer à Justiça, tanto pessoas físicas quanto empresas e órgãos do governo podem buscar solução por meio da arbitragem. De acordo com a legislação, “pode ser árbitro qualquer pessoa capaz e que tenha a confiança das partes”. Embora o artigo 14 da Lei da Arbitragem diga que “as pessoas indicadas para funcionar como árbitro têm o dever de revelar, antes da aceitação da função, qualquer fato que denote dúvida justificada quanto à sua imparcialidade e independência”, a máxima não tem sido respeitada em vários casos. Em alguns, de forma a comprometer a lisura do processo.

Em 2017, um embate entre a empresa brasileira Adriano Ometto e a espanhola Abengoa ficou bastante conhecido por envolver altos valores. A companhia europeia sagrou-se vitoriosa na disputa, ocorrida em uma corte arbitral nos EUA, impondo ao brasileiro o pagamento de US$ 100 milhões. O Superior Tribunal de Justiça, porém, se recusou a homologar a sentença arbitral estrangeira e acolheu um recurso do empresário brasileiro por entender que, embora não lhe caiba a análise do mérito desse tipo de decisão, o STJ ainda tem o dever de examinar a compatibilidade dessas decisões com a ordem jurídica nacional que é sua missão constitucional. Na ocasião, a companhia nacional alegou que o presidente do trio de árbitros, David Rivkin, era sócio sênior do escritório de advocacia que defendeu os interesses da Abengoa em outras ocasiões. O argumento foi acolhido pelo STJ.

Situações assim têm sido agravadas pelo fato de que as disputas arbitrais são litígios privados entre duas partes e, por isso, correm em sigilo, o que dificulta saber se um árbitro está atuando em outro caso com potencial de conflito de interesses. Apesar do sigilo, grandes empresas e até mesmo alguns juristas têm falado sobre os problemas do chamado “clube da arbitragem”, em que os advogados da área trocam indicações como árbitros uns para os outros.

Segundo uma pessoa ouvida pela reportagem, nos últimos três anos ocorreram pelo menos 18 casos em que conflitos de interesse não revelados levaram à renúncia de árbitros e ações judiciais que pedem a anulação do processo arbitral. A Justiça não pode reavaliar o mérito de uma arbitragem, mas pode analisar a legalidade do processo. Isso tem levado a uma intensificação dos pedidos de anulação de arbitragem. Estima-se que sejam invalidadas quase 20% das arbitragens que são levadas à Justiça. Estes pedidos são motivados, na maioria das vezes, pela falta de transparência por parte dos árbitros no chamado “dever de revelação”, ou seja, o compromisso que os árbitros têm de revelar episódios que possam gerar possíveis conflitos de interesses em relação a uma das partes envolvidas na disputa.

O caso mais recente envolve a briga bilionária entre a J&F Investimentos, dos irmãos Joesley e Wesley Batista, um dos maiores grupos privados do Brasil, e a indonésia Paper Excellence. Elas disputam ações da Eldorado Brasil Celulose. O grupo brasileiro descobriu que o árbitro Anderson Schreiber dividia salas, telefones, funcionários e até clientes com o escritório Stocche Forbes, que defende a Paper Excellence. O árbitro não revelou isso ao assumir o tribunal e deixou o caso após os episódios virem à tona. A J&F tenta anular o processo, mas a juíza de primeira instância Renata Mota Maciel negou o pedido dos irmãos Batista. A apelação corre no Tribunal de Justiça de São Paulo. A Paper Excellence ganhou a arbitragem, mas dois dos três árbitros renunciaram após a J&F descobrir vínculos não revelados entre eles e os advogados da empresa.

Segundo fontes da J&F, a empresa entende que a anulação se aplica não apenas pelo fato de o árbitro Anderson Schreiber ter omitido o fato de que mantinha tal proximidade com o escritório Stocche Forbes, mas também por outro motivo que configura caso de polícia. Uma investigação descobriu que mais de 70 mil e-mails da J&F foram desviados por um hacker contratado pela Paper Excellence, incluindo todas as comunicações entre a empresa e seus advogados no caso.

Para a J&F, o tribunal arbitral extrapolou sua jurisdição na sentença, obrigando a empresa a celebrar contratos adicionais que não estavam previstos no contrato de venda das ações da Eldorado. Segundo o VP da J&F, a arbitragem manteve válido um contrato de compra e venda que teve seu vencimento em setembro de 2018. O documento, assinado um ano antes, dava à Paper Excelence a opção de adquirir as ações da Eldorado detidas pela J&F, pelo valor aproximado de R$ 6 bilhões. “Se sair vitoriosa, a justiça arbitral estará dando a Paper Excelence a possibilidade de comprar com um ativo por menos da metade do atual valor de mercado”, afirmou Silva.

Embora o caso envolvendo a J&F e a Paper Excellence tenha desdobramentos que transcendem a isenção do árbitro, a falta de transparência — que fere o artigo 14 da Lei 9.307 — tem maculado outras decisões. Em uma arbitragem de acionistas minoritários contra a Petrobras, o presidente do tribunal escondeu que advogava para uma associação que movia processo idêntico contra a petroleira. Em outra disputa, envolvendo a seguradora Munich RE e o grupo Safra, um dos árbitros omitiu ter sido diretor jurídico de uma das partes no passado.

18 casos em que conflitos de interesse não revelados levaram à renúncia de árbitros e ações judiciais que pedem a anulação do processo arbitral 

AUTORREGULAÇÃO Os episódios ilustram o desafio que o mundo da arbitragem tem pela frente. Com cada vez mais desconfiança das empresas e mais ações anulatórias na Justiça, a arbitragem vê ameaçadas suas duas principais vantagens: a credibilidade e a celeridade. Diretores jurídicos de pelo menos duas grandes empresas já confessam estar reavaliando a inclusão de cláusulas de arbitragem em seus contratos. Para especialistas, uma solução deveria vir do próprio sistema arbitral, porque a lei já exige que os árbitros revelem qualquer fato capaz de gerar dúvida justificada nas partes sobre sua imparcialidade e independência.

O professor em Direito Econômico da USP e uma das referências da área, Heleno Torres, lembra que a autorregulação tem se mostrado eficiente em outros segmentos e defende que seja criado um Colégio de Câmaras Arbitrais, para uniformizar os entendimentos dos colegiados. Ao falar para um evento promovido pela OAB em, Brasília, no início de novembro, Torres afirmou: “Há muitos empresários que não estão contentes com o atual modelo, isso é uma realidade, por esse motivo cabe às câmaras de arbitragem construir soluções que sejam pacificadoras e que ao mesmo tempo sejam compartilhadas entre as câmaras”. Segundo ele, a criação de colégio de câmaras arbitrais poderá fortalecer ainda mais a atividade no Brasil.

Para o ministro do STJ Luis Felipe Salomão, se os especialistas e atores da área não se mobilizarem por essa autorregulação para enfrentar os problemas do mecanismo a arbitragem pode vir a ser regulada de forma mais intensa pelo Estado. “Se não for feita uma autorregulação própria, aí sim vai ter que se buscar outras ferramentas para fazer os aperfeiçoamentos, inclusive de natureza legislativa”, afirmou o magistrado. A opinião é compartilhada pelo ex-presidente do STJ César Asfor Rocha. “Devemos ter muito orgulho da arbitragem brasileira, que deve ser reconhecida, mas ela tem falhas a serem corrigidas”, afirmou.