Examinando-se alguns dados da economia argentina, várias inconsistências saltam aos olhos imediatamente. A taxa de inflação vem subindo exponencialmente desde março de 2022, de 55,1% em 12 meses a 102,5% em fevereiro passado. Apesar desse nível de inflação, o Banco Central fixou a taxa básica de juros em 78% a.a. no 16 de março – taxa real negativa – caracterizando uma política monetária extremamente frouxa.

Quando se atenta para a série das contas públicas, verifica-se que o país vem tendo déficits desde 1961, exceto para o período 2003 a 2008, devido ao boom das commodities. Entre 1961 e 2002, o déficit acumulado foi de 180% do PIB. Em contraste, de 2003 a 2008 o superávit acumulado foi de 7% do PIB. Com o término do boom o país retomou a trajetória de déficit. De fato, de 2009 até hoje, o déficit acumulado atingiu cerca de 15% do PIB, evidenciando o tradicional caráter expansionista da política fiscal no país.

Naturalmente o financiamento desses déficits levou a um patamar elevado da relação dívida pública/PIB, que se encontra por volta de 90%. A dinâmica desta dívida é bastante perversa, dados os altos juros necessários para sua rolagem, por um lado. E o baixo crescimento do PIB, por outro. A quebra deste círculo vicioso exigiria superávits primários na casa de 5% do PIB ao ano durante um bom tempo, o que, além de ser incompatível com a história do país, no ano de 2023 se torna ainda mais difícil, devido às eleições.

No front externo, a situação não é muito melhor. O nível de reservas internacionais, que chegou a apenas US$ 10 bilhões em 2003, em função do plano de estabilização calcado em uma âncora cambial, recuperou-se até atingir US$ 76 bilhões em 2019, encontrando-se hoje em US$ 38 bilhões, tendo o país perdido metade de seu estoque em quatro anos. O saldo no Balanço de Pagamentos continua deficitário em cerca de 3,5% do PIB, levando o país a um acordo com o FMI, o que não evitou uma perda de reservas e forte alta na inflação.

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A partir desse quadro surge a questão: por que a Argentina não consegue sair desta situação que se repete há bastante tempo?

Em primeiro lugar, a crença arraigada há muito tempo de que gastos públicos são o motor do crescimento. Essa visão levou a uma máquina pública bastante inchada, cara e ineficiente, sendo muito difícil reverter esta situação, ainda que houvesse vontade política para isso. O mandato de Mauricio Macri é um bom exemplo. Após assumir prometendo reformas, mudou a estratégia, o que não impediu que fosse derrotado por Alberto Fernandes.

Esses déficits exigem financiamento, o que só pode ocorrer via venda de títulos e/ou emissão de moeda. O primeiro caminho (via venda de títulos) vem sendo utilizado na medida do possível. Entretanto, dada a baixa credibilidade do governo, e elevada relação dívida pública/PIB (por volta de 90%) a colocação de títulos fica limitada. O segundo caminho (via emissão de moeda) teve de ser usado de modo intenso e exigiu o abandono do regime de metas de inflação. Emissão de moeda nestes termos necessariamente gera inflação e explica o atual patamar de 102,5% de alta preços na Argentina.

Obviamente este patamar de inflação é péssimo para a popularidade da classe política, o que acabou dando origem a medidas populistas e intervencionistas equivocadas, como controle de preços, controle do câmbio, tarifas subsidiadas e imposto sobre as exportações.

Com esse grau de aquecimento na demanda agregada e o baixo nível de produção doméstica, as contas externas se tornam deficitárias. Dada a dificuldade de o país captar no mercado externo privado, a situação levou ao uso de reservas internacionais – cerca de US$ 38 bilhões atualmente – e a um acordo com o FMI. O ano eleitoral dificulta bastante o cumprimento das metas estabelecidas no acordo, não se esperando grandes progressos para este ano.

O aspecto relevante agora é entender até que ponto o resultado destas eleições (marcadas para 22 de outubro) pode alterar este quadro. É conhecida a dificuldade de se implementar uma política fiscal responsável na América Latina, principalmente na Argentina. Seria de suma importância o estabelecimento de âncoras fiscais e monetárias críveis no próximo governo para que, dentro de algum tempo, a Argentina voltasse a uma trajetória virtuosa, como já ocorreu. Mas no início do século passado.

VITORIA SADDI é estrategista da SM Futures. Dirigiu a mesa de derivativos do JP Morgan e foi economista-chefe de Roubini Global Economics, Citibank, Salomon Brothers e Queluz Asset. É PhD em economia pela University of Southern California.