12/10/2005 - 7:00
O Brasil decidirá, em 23 de outubro, se os cidadãos com mais de 25 anos, sem antecedentes criminais e psicologicamente sãos, poderão ir às lojas comprar armas. O referendo levará ao ?sim? ou ?não? um único capítulo do Estatuto do Desarmamento, em vigor desde dezembro de 2003: aquele que determina a proibição do comércio de armas de fogo e munição.
Há, nessa decisão, comoção de final de Copa do Mundo, algo próximo a uma guerra de religiões, em um País rachado pela violência e pobreza. ?Estamos tentando desarmar os pobres, porque a classe média raramente atira?, resume o coronel José Vicente da Silva, ex-Secretário Nacional da Segurança Pública durante o governo de Fernando Henrique Cardoso. ?A arma da classe média é o carro?. Por trás do embate, saudável por esclarecedor, há uma discussão econômica. Entendê-la, e conhecer o tamanho do mercado de armas e munições, pode ajudar na hora do voto.
Os principais fabricantes de armas do Brasil, é natural, são contra o veto. A Companhia Brasileira de Cartucho (CBC) e a Forjas Taurus, donas de 80% dos negócios no setor, atribuem ao desarmamento um golpe fatal. ?A CBC vai aguardar o resultado para tomar qualquer decisão estratégica, sabendo, no entanto, que prevalecendo o ?sim? poderá haver diminuição de produção e de funcionários?, diz o presidente Antonio Marcos Barros. Convém lembrar, contudo, que o mercado é restrito. O setor de armas pequenas e munições equivale a 0,048% do total da produção industrial brasileira. O faturamento anual é de R$ 390 milhões. Embora pequeno, é um segmento rentável. Em 2004, a Taurus teve faturamento de R$ 164,8 milhões, 70% dos quais recolhidos em exportações. Como a fatia interna já encolheu, com a aprovação do Estatuto, e não há retorno possível, seus executivos temem agora que também as vendas para o exterior diminuam. Tudo porque o governo taxou em 150% as exportações de armas leves para os países da América do Sul, América Central e Caribe, de modo a evitar o contrabando. A artilharia, tal como já ocorre com cigarros, volta ao Brasil, via Paraguai, de modo ilegal.
Quando se olha com lupa a possibilidade de perda de empregos, argumento crucial dos fabricantes, nota-se algum exagero. Eles calculam o desemprego de 27 a 40 mil pessoas ao longo de toda a cadeia produtiva. É estimativa inchada. As cinco empresas do ramo empregam, hoje, pouco mais de 6500 profissionais. Historicamente, à medida que o porte e a posse de armas são restringidos, a tendência é a reconversão da produção e comércio para outros produtos. É o que ocorre, já há algum tempo. Em 1986, as armas respondiam por 74% da produção da Taurus. Em 2003, representavam meros 41%. É uma revolução que começa no chão da fábrica e alcança o comércio de rua. ?Hoje, vivo de vender material de camping e pesca?, diz Marco Aurélio Sprovieri, da ?Ao Gaúcho?, a loja de armas mais antiga de São Paulo, fundada há 80 anos. ?Na época do Plano Cruzado vendia mil unidades por mês. Em 2004, negociei apenas 80?. O coronel Vicente da Silva resume numa frase essa percepção econômica: ?ter uma arma, hoje, é complicação muito grande.?
Se as restrições impostas pelo Estatuto já encolheram o mercado, por que então os adeptos do ?sim? são tão entusiastas? Em outras palavras: por que realizar um referendo para determinar aquilo que já ocorre na prática? ?Porque não vejo qualquer efeito negativo na proibição?, diz Vicente da Silva. Experiências realizadas em outros países mostram que ele pode ter razão. Nos estados americanos onde a proibição de comércio vigora, a dificuldade em encontrar armas fez o preço disparar e a circulação diminuir. Trata-se da velha e boa lei da oferta e procura. Diz-se, com alguma frequência, que a proibição levaria à ilegalidade, como na Lei Seca dos EUA, que vigorou de 1919 a 1933. Há diferenças cruciais. Em primeiro lugar, os especialistas acreditam que muito dificilmente os adeptos de armas que antes eram compradas legalmente passarão ao mercado paralelo. Ressalte-se que o veto ao álcool nos EUA contrariou a opinião pública. Já o Estatuto do Desarmamento, à época de sua aprovação pelo Congresso, em 2003, tinha 78% de apoio popular, segundo pesquisas. O referendo pode ratificar essa impressão, caso dê o ?sim?. A vitória do ?não? deixará tudo como está (leia à página 44). O ?como está? no Brasil é um cenário triste, no qual contam-se 40 mil mortes violentas ao ano. É a fissura social. ?Deve-se lembrar que mesmo os agentes de segurança privados, autorizados ao porte de arma, estão morrendo como passarinhos diante de assaltantes, tristemente mais treinados em matar?, afirma Vicente da Silva.
Menos grave que o combate a balas é o dos números, mas ele também tem produzido feridos. O deputado Alberto Fraga (PTB-DF), da Frente Parlamentar pelo Direito da Legítima Defesa, faz uma conta: segundo ele, das 56 mil armas vendidas em 2004, apenas 1.244 foram compradas por civis. O restante foi adquirido pela polícia. Os defensores do ?sim? exibem outras cifras, colhidas no banco de dados de controle de armas do governo: para eles, apenas no primeiro trimestre deste ano foram registradas 16.080 armadas vendidas a civis. Dá-se a diferença na contagem, de um grupo e outro, porque o universo das armas, apesar do Estatuto em vigor, cresce no caixa 2, no ?por fora?, no crime.
A barafunda de estatísticas, incertas como uma bala perdida, não impede os dois lados, o do ?não? e o do ?sim?, de as interpretarem a seu modo. Hoje, no Brasil, há todos os anos 27 homicídios para cada grupo de 100 mil habitantes e 3,5% dos domicílios têm armas. Nos EUA, onde cinco de cada dez residências têm armas, a taxa de mortalidade é de 6 para 100 mil. Os defensores do ?não? apontam esse dado como prova de que o problema brasileiro está no armamento ilegal, contrabandeado, que não entrará no desarmamento. A turma do ?sim? vai em outra direção: sustenta que o crime se abastece com armas legais, desviadas do cidadão comum e por isso é vital proibir o comércio. São argumentos razoáveis, e ambos devem ser postos à mesa. É inquestionável, contudo, que o recorde mundial de assassinatos com arma de fogo no Brasil é obsceno, inaceitável, e que algo deve ser feito a respeito. Costuma-se dizer que vidas não têm preço, mas cabe lembrar que as internações em hospitais públicos de feridos a bala custam 16,45% mais que as vítimas de acidentes de trânsito, um valor que chega a R$ 140 milhões anuais.
?Sabemos que o desarmamento da população não resolverá todos os problemas de violência no Brasil?, diz o sociólogo Antonio Rangel Pestana, do Instituto de Estudos Sociais e Religiosos do Rio de Janeiro, o Iser, líder da frente pelo ?sim?. ?Mas é um primeiro passo. Logo em seguida podemos discutir a reforma das polícias?. Rangel ancora-se em Betinho, o irmão do Henfil citado na canção de João Bosco e Aldir Blanc, um brasileiro evidentemente do bem, para lutar pela proibição. ?Ele dizia que a fome não podia esperar, embora soubesse que sua campanha não fosse a solução?, ressalta. ?Agora, é a preservação da vida que não pode esperar?. É raciocínio poderoso, mesmo para quem acha que o Estatuto do Desarmamento será mais uma lei desrespeitada pelos bandidos e que o poder público não dará conta de fazê-lo cumprir ? mas nem sempre é assim. Pensava-se o mesmo quando o governo decretou as tarjas pretas nos remédios e o uso obrigatório do cinto de segurança. São leis que, no jargão popular, pegaram. O caro referendo do próximo dia 23, que custará R$ 500 milhões ao cofres públicos, não abolirá a violência brasileira, mas pode ter resultados positivos. ?Vai-se tentar diminuir o número de crimes violentos, atacando uma área muito sensível, de pessoas que não são criminosas mas que acabam cometendo crime porque têm acesso fácil a armas de fogo?, resume Michel Misse, professor da UFRJ e coordenador do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana. ?Quanto aos bandidos?, diz ele, ?bandido é bandido, é fora-da-lei, não tem lei no mundo que vá tentar regular bandido?. A solução para a criminalidade, que atormenta brasileiros de todas as classes sociais, passa por uma polícia melhor, por uma Justiça mais eficiente e, claro, por uma distribuição mais justa da renda. O referendo inicia a discussão, não termina com ela.
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O tamanho da indústria no Brasil
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Os tiros custam mais que os acidentes de trânsito
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16,45% mais caras são as internações médicas por balas 140 milhões por ano são gastos com as internações 17 milhões de armas existentes no Brasil 49% são legais e devidamente registradas |