20/05/2014 - 18:10
Saber a procedência de um produto de luxo sempre fez diferença. O champanhe Krug? É francês. O Brunello encorpado? Italiano. O melhor caviar? Olha, a Petrossian nasceu em Paris, mas o esturjão é russo, camarada! Pois bem, em 2015, uma linha especial do refinado café encapsulado pela suíça Nespresso deverá chegar às lojas com um selo de origem onde estará gravado “made in South Sudan”. E isso fará toda a diferença. Será o capítulo final de uma história iniciada dois anos antes, mais precisamente em julho de 2013, data do anúncio feito em Paris sobre a parceria entre a consagrada marca da bebida, que pertence à gigante Nestlé, e o combalido país no miolo norte do continente africano cujo solo, encharcado de petróleo, tem se mostrado apto gerar um outro tipo de “ouro negro”.
Será também o capítulo inicial de uma nova e esperançosa vida para milhões de habitantes do Sudão do Sul, com sua breve história marcada pela miséria e opressão, oriunda do ditador do vizinho Sudão, de quem é derivado. O elo entre todas as partes, entre o fim e o começo, o luxo e a necessidade, a letargia e a transformação, tem na atuação humanitária o seu papel mais importante: é o ator americano George Clooney. Aos 52 anos, é ele quem conecta a desesperança com a esperança. O glamour do exclusivo com a consciência de que todos somos iguais.
Platinum esteve no evento que tornou pública a intenção da Nespresso – companhia que faturou estimados US$ 4 bilhões em 2012 – em investir no país africano. “Foi ideia minha”, disse Clooney, diante de pouco mais de 30 jornalistas a bordo de um bateau-mouche que descia pelo rio Sena, em uma agradável manhã de verão na capital francesa. “Eu falei sobre o assunto e eles (a direção da empresa) me disseram: ‘veremos se faz sentido produzir café nesse país’. Eles viajaram para lá e constataram que havia uma chance de desenvolver a produção”, lembrou o ator. “Empresas não fazem caridade.
A Nespresso vai investir no país porque as terras são boas o suficiente para o café da marca”, comentou. O astro do cinema parecia satisfeito por notar que seu gesto transformaria a realidade sudanesa. Uma ação simples: chamar a atenção da comunidade internacional para o caos nas fronteiras do Sudão, levando consigo todas as câmeras e microfones que conseguisse. “É o que eu faço: se as câmeras me seguem, vou a partes do mundo que necessitam ser vistas”, resumiu Clooney o seu golpe de mestre. Igualmente entusiasmado, o CEO da Nespresso, Jean-Marc Duvoisin, demonstrava ter a noção da grande oportunidade embutida no desafio de transformar o Sudão do Sul em um país exportador de café premium.
Há, hoje, uma vertente no consumo de luxo mundial que valoriza a compra consciente. Para eles, ter só a logomarca estampada não basta. “As empresas são grandes agentes de transformação econômica, política e social. Dentro desse contexto, elas precisam se posicionar sobre os temas importantes para a sociedade”, afirma Luciano Deos, presidente da consultoria Gad’Lippincott. “E associar-se a celebridades engajadas é uma estratégia acertada para acelerar esse posicionamento da grife.” Por esse prisma, ser “do bem” tem se tornado cada vez mais um título cobiçado pelos departamentos de marketing das empresas.
Colegas de turma
Historicamente, o poder transformador do indivíduo sobre o coletivo requer carisma e retórica. Uma frase bem colocada em um discurso ou entrevista pode se tornar um slogan eternizado no tempo. Em 2000, a atriz Angelina Jolie visitou o Camboja, pequeno país do sudeste asiático, para as filmagens do longa-metragem de ação “Lara Croft: Tomb Rider”. A atriz saiu de lá encantada e prometeu voltar. Dois anos depois, Angelina reapareceu como comissariada da ONU, no papel de Embaixadora da Boa Vontade para os Refugiados, e adotou Maddox, à época com 5 anos, em um orfanato da região.
Mais nove anos se passaram, até que a mulher do ator Brad Pitt desembarcasse novamente no país. Desta vez, trazia consigo as lentes da fotógrafa Annie Leibovitz e uma trupe de agentes, produtores e executivos da maison francesa Louis Vuitton. Angelina havia convencido os diretores da marca a fotografá-la para a campanha daquele ano em meio à comunidade da província de Siem Reap. Descalça, com suas próprias roupas e apenas bolsa compondo a cena, ela posou sobre um barco típico cambodjano em um dos alagadiços da província. A imagem, editada no formato de cartão-postal, vinha acompanhada de uma frase no rodapé que muitos garantem ser de autoria da atriz: “Uma única viagem pode mudar o curso de uma vida.
Camboja, maio de 2011.” A viagem mudou, de fato, a vida de Angelina. Deu a ela um filho, consciência humanitária e desapego. O cachê que recebera da Louis Vuitton, de US$ 10 milhões, foi, em grande parte, destinado a obras sociais locais. Em março deste ano, Angelina aportou no Afeganistão. Foi conhecer a escola para meninas, no subúrbio de Cabul, que ela financiou com 100% dos lucros obtidos na venda de joias da coleção a Style of Jolie, criada pela atriz e pelo designer Robert Procop há dois anos, para a exclusiva joalheria americana Tivol. Outras marcas de luxo também têm sido influenciadas por seus embaixadores.
A suíça Tag Heuer apoia financeiramente os dois projetos sociais indicados por seus garotos-propaganda, Cameron Diaz e Leonardo DiCaprio. A atriz ajudou a desenvolver a linha de relógios Link Lady Trilogy, cuja venda é revertida para a Un Women, programa da ONU que cuida dos direitos civis das mulheres em zonas de risco. “Estou profundamente agradecida à marca por compartilhar o meu desejo de apoiar as mulheres que não são livres nem mesmo para perseguir os objetivos mais básicos só por causa de seu sexo”, disse ela. Essas iniciativas são aprovadas pela direção da companhia.
“Além de visibilidade, isso traz à empresa a confiança e o respeito dos consumidores”, explica Bruno Duchene, diretor da Tag Heuer na América Latina. Ativista ambiental desde os 22 anos – na época, ele foi um dos líderes da campanha Save Tigers Now –, DiCaprio chegou a doar US$ 1 milhão para a causa que quer dobrar o número de tigres selvagens até 2022. Existem hoje 3,2 mil tigres selvagens no mundo, 97% a menos do que no início do século XX. O ator emprestou a sua imagem “do bem” para os relógios Tag Heuer Aquaracer 500M Leonardo DiCaprio, doando os royalties para duas ONGs ambientais: Natural Resources Defense Council (NRDC) e a Green Cross International.
“Jean Christophe Babin, CEO e presidente da marca, ficou entusiasmado com a ideia desde o início. Ele compreendeu a importância de fazer o bem ao ajudar a levantar dinheiro para as organizações que atuam impactando o mundo de maneira positiva”, conta o ator. A parceria fez com que a Tag Heuer reavaliasse sua política ambiental internamente. Para isso, a empresa contratou um especialista em sustentabilidade e criou uma série de ações visando à diminuição do impacto ambiental, como a reutilização de energia, a reciclagem de correias para a fabricação do relógio Monaco V4, a adoção de telhados vegetais para isolamento e filtragem da água, e um novo sistema de gravação a laser que economiza 900 litros d’água por hora.
Em cinco meses, a fábrica conseguiu diminuir o consumo de água em 70% e o de combustível em 11%, e aumentou a sua produtividade. Além disso, a Tag Heuer colabora com o ator na produção de documentários. A rigor, a união entre marcas de luxo e celebridades é antiga. O que mudou nos últimos anos é que os astros não querem simplesmente fotografar e levar o cachê para casa e as marcas também não querem uma celebridade que tenha só fama e um rostinho bonito. Prova disso é a parceria do ator Daniel Craig com a Omega.
Quando se tornou embaixador da marca suíça, o britânico deixou claro que gostaria de se envolver nos negócios sustentáveis da companhia. Craig procurou, então, o CEO do grupo Swatch, Nick Hayek, com o desejo de participar em alguma ação humanitária. “Começamos a pensar em algumas opções e descobri a Orbis International em um documentário”, conta o executivo. “Mostrei para Craig que, na mesma hora, se apaixonou pelo projeto.” O atual intérprete do agente 007 no cinema pegou carona em um avião-hospital até a Mongólia, em 2011, e ficou encantado com o projeto.
O jato, intitulado “Flying Eye” (olho que voa, em inglês), deu atendimento oftalmológico a adultos e crianças necessitadas, além de promover cirurgias e treinamento a bordo a médicos e enfermeiros locais. Países como a Etiópia, por exemplo, com uma população superior a 91 milhões de habitantes, têm à disposição menos do que 100 médicos especializados na área. É aí que o Orbis entra em ação. A viagem a Ulan Bator, a capital da Mongólia, rendeu até um documentário de 26 minutos sobre a visita. “Mostrando a realidade desses lugares e das doenças para as pessoas é uma maneira de fazer com que o mundo preste atenção no problema”, afirma Craig, que foi o garoto-propaganda do modelo de relógio DeVille Orbis Hour Vision Blue, lançado em 2011 para celebrar a parceria.
Foi também para mostrar uma dura realidade, a do Sudão do Sul, que sofria nas mãos do presidente Omar Al-Bashir, do vizinho Sudão, que Clooney esteve na região, em janeiro de 2011, na companhia do então senador americano, e atual secretário de Estado dos EUA, John Kerry. Ali, ele testemunhou ataques aéreos do ditador sobre um campo com 30 mil refugiados, nas montanhas do país. Em 2012, o ator e seu pai, Nick, foram presos em um protesto em Washington (DC) pelo fim da violência naquela fronteira. Clooney é capaz de ações ainda mais ousadas.
Ele contou, em Paris, que desde 2010 financia a vigilância daquela àrea com o auxílio de um satélite. O dinheiro para alugar o equipamento vem de parte dos US$ 10 milhões de cachê anual que ele recebe da Nespresso. “Omar Al-Bashir disse que eu o espiono. E eu digo: bem-vindo à minha vida, sr. criminoso de guerra”, declarou ele. Em julho de 2011, após um referendo, o Sudão do Sul foi declarado Estado independente e reconhecido por órgãos internacionais como país livre.
O caminho se abria para novos investimentos, como percebeu a marca de café, orientada pelo ator. Ao final do trajeto pelo Sena, Clooney foi cercado pelos fãs e suas câmeras no píer. De fato, se o foco das lentes persegue as celebridades, por que não tornar isso algo produtivo? É o que o mercado de luxo tem buscado fazer. “O setor se deu conta de que é preciso trazer mais conteúdo e novos valores para a construção da identidade de uma grife”, diz Luciano Deos. “O consumo que prega a sofisticação pela sofisticação, o prazer pelo prazer, já não se sustenta mais”, conclui.
(Matéria publicada na edição 37 de setembro/outubro/novembro de 2013 da ISTOÉ Platinum)