05/03/2022 - 6:01
Diplomacia brasileira vota na ONU contra a invasão russa na Ucrânia, mas Bolsonaro declara postura de neutralidade frente ao conflito. Ficar em cima do muro pode cobrar um preço, avaliam especialistas.Enquanto o Ocidente se mostra unido contra a invasão russa na Ucrânia, o posicionamento brasileiro oscila de forma surpreendente. “Existe uma postura bem ambígua, para não dizer esquizofrenia, por parte do governo brasileiro”, afirma David Magalhães, professor de relações internacionais da Fundação Armando Alvares Penteado (Faap), à DW.
“No Conselho de Segurança, o governo já se juntou a outros países, num voto que foi bastante duro contra a Rússia.” Por outro lado, o governo brasileiro não apoiou a declaração da Organização dos Estados Americanos que criticava a invasão russa.
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Quando se olha para as manifestações pessoais de Bolsonaro, o panorama fica ainda mais confuso. “Na própria manifestação pessoal do presidente da República, ele tem se declarado neutro. Mas uma neutralidade que interpreto como sendo sensivelmente inclinada à Russia”, diz Magalhães.
Mas de onde vem essa esquizofrenia? Para o professor da FAAP, existe uma divisão dentro dos grupos bolsonaristas, e ela revela diferentes visões sobre o conflito. “Tem um núcleo que tem se inspirado na extrema direita ucraniana, que ascendeu com as manifestações do Euromaidan. Por outro lado, há grupos que se inspiram no regime do Putin, por se tratar de um regime autocrático, conservador, muito fortemente vinculado à igreja ortodoxa russa e contra direitos de minorias, como a comunidade LGBTQI+ e movimentos feministas.”
“É uma base que chamo de um nacionalismo religioso cristão”, resume Magalhães. Bolsonaro nunca escondeu sua admiração pela figura de liderança autoritária de Putin, caraterizando o presidente russo como um líder conservador.
Sinuca de bico
Num panorama mais amplo, posicionar-se neste conflito coloca Bolsonaro em uma grande sinuca de bico. Se ele apoiar a Ucrânia, entra na foto com líderes que os bolsonaristas chamam de “globalistas”, como Justin Trudeau, Joe Biden, Olaf Scholz ou Emmanuel Macron.
“Por outro lado, há uma certa desconfiança de assumir uma postura abertamente pró-Rússia, pois isso coloca Bolsonaro junto com a esquerda bolivariana, Cuba, Nicarágua e Venezuela, que representa de longe o inimigo número um do bolsonarismo. Isso gera um impasse, ou até uma paralisia em relação a como se posicionar nessa guerra.”
Portanto, a neutralidade “esquizofrênica” de Bolsonaro, em certa medida e em partes, é produzido por esse constrangimento que vem de ambos os lados.
Como saída, o Brasil tenta assumir uma postura parecida com a da Índia. O voto do Brasil e o voto da Índia no Conselho de Segurança são muito parecidos, na forma e no conteúdo.
Para os russos, a neutralidade brasileira não traz problemas. “Poderia gerar um problema diplomático e nas relações econômicas com a Rússia se o Brasil se posicionar ou solidarizar com a Ucrânia ou veementemente contra a invasão russa. Aí poderia ter alguma retaliação no campo econômico”, disse Magalhães. “Mas essa posição que o Brasil toma não traz prejuízo às relações bilaterais.”
Por outro lado, a inclinação pessoal de Bolsonaro para o lado russo gerará uma reação no Ocidente. “A imagem brasileira, que já não era boa na comunidade internacional, piora. Boa parte das democracias liberais no mundo rejeitam a agressão russa. E o Brasil se isola ainda mais com esse posicionamento bastante ambíguo.”
Consequências econômicas
Para o economista João Ricardo Costa Filho, pesquisador na Universidade Nova de Lisboa, a posição de neutralidade não tem um efeito imediato sobre a economia brasileira.
“No curto prazo, o Brasil não tem nenhum tipo de risco, pois ninguém está muito preocupado com a posição do Brasil em relação a este conflito. Mas, dependendo de que lado vai vencer a guerra, a conta pode vir depois. E ela pode vir de diversas formas”, avalia.
Para Costa Filho, poderá haver consequências para futuros acordos comerciais ou de investimentos estrangeiros. Isso seria o caso do acordo comercial entre a União Europeia e o Mercosul, que está num limbo já há dois anos. Assim, a posição de neutralidade pode servir de argumento por aqueles agentes que já não estavam muito confortáveis com o acordo.
Na época, o acordo sofreu críticas vindas da União Europeia pela falta de proteção ambiental, principalmente da Amazônia, do lado do governo brasileiro. “Lá na frente, quando a gente precisar fazer andar estas agendas, pode tornar um pouco mais difícil.”
Na falta de um acordo com os europeus, o Brasil poderia aumentar seu comércio com os países dos Brics, para contra-balancear? Para Costa Filho, não há muito potencial de crescimento por esse lado. “A China ja é um grande parceiro nosso, e a Rússia vai demorar para se recuperar. Seria difícil o Brasil se apoiar nestas trocas financeiras ou comerciais para sustentar um crescimento de longo prazo.” Assim, o conflito trará menos crescimento e mais inflação para o Brasil, avalia Costa Filho.
Para o economista Joelson Sampaio, especialista em Finanças Corporativas e Mercados Financeiros pela Fundação Getúlio Vargas, a neutralidade não impacta no cenário econômico brasileiro a curto prazo. “Mas ficar em cima do muro pode ter impactos não tão imediatos. Seriam impactos diplomáticos-políticos, que depois chegam na economia”, disse. O mais concreto seria uma deteriorização das relações comerciais com os Estados Unidos.
Por outro lado, os efeitos econômicos da guerra em si aconteceriam de qualquer forma, tais como aumento dos preços dos commodities e aumento da inflação no Brasil, avalia o especialista. Ao mesmo tempo, o aumento desses preços ajudaria as exportações brasileiras.
“Muitos economistas veem este efeito como um contra-balanceador para reduzir os impactos da guerra no Brasil. Por um lado, temos os desafios via preços, mas por outro lado podemos ter um favorecimento de exportação de commodities importantes para o Brasil, um aumento de volume com preços. E isso trazer resultados positivos para o Brasil.”