“Trabalho não falta. Se eu perder o emprego, consigo outro em um mês”, dizia o técnico de som Mario Miranda, enquanto fazia compras com a mulher, Claudia Ybarra, e os dois filhos pequenos, Bianca e Mario, num supermercado no bairro de classe média de San Cristóbal, em Buenos Aires, na terça-feira 25. 

 

Mas o carrinho mesmo estava quase vazio. Assustado com a alta de preços dos produtos básicos, o casal procura diariamente promoções. Tenta fugir dos altos preços da carne e do frango, principais vilões da inflação no país, calculada em até 26% no ano passado pelos institutos independentes, mais que o dobro dos 10% estimados pelo desacreditado instituto oficial Indec. A perspectiva é de que a taxa continue subindo em 2011 para algo em torno de 30%. 

 

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Cristina Kirchner: tristeza com inflação de quase 30%, alegria com crescimento de 8% em 2010

 

Não muito longe dali, a comerciante Guillermina Masaut, 31 anos, mostrava-se satisfeita com as vendas de roupas em seu pequeno estande, numa galeria de comércio popular no centro de Buenos Aires. O negócio lhe rende cerca de 3 mil pesos (R$ 1.250) ao mês. 

 

Entretanto, ela também reclama do custo de vida. “Antes se comprava algo no supermercado com 50 pesos. Hoje, levo 100 e saio com duas sacolinhas. Na minha casa, estamos comendo carne só três vezes por semana.” 

 

Satisfação com a economia e medo da deterioração do poder de compra são duas faces da mesma Argentina que Dilma Rousseff encontrará em sua primeira viagem internacional no cargo de presidente, marcada para a segunda-feira 31. 

 

O país vizinho está claramente aliviado com o aquecimento econômico, ainda que o preço a pagar seja a segunda maior taxa de inflação na América Latina, atrás apenas da Venezuela.  Dilma e sua colega Cristina Kirchner, as duas mulheres mais poderosas da região, têm muito o que conversar nos próximos meses. 

 

Temas importantes fazem parte da agenda bilateral, como a maior integração do setor automotivo e da cadeia de petróleo, além de um possível acordo para vendas conjuntas em terceiros mercados. Enquanto o Brasil está mais avançado na rota do crescimento sustentado, a Argentina tem sofrido para ajustar sua economia e entrar na rota da estabilidade.

 

Aumentar a taxa de investimento no país para tornar o crescimento sustentável é o principal desafio de Cristina, que lidera as pesquisas de intenção de voto e pode se reeleger em outubro. “O crescimento com inflação tem pernas curtas se não houver investimento”, afirmou à DINHEIRO o ex-ministro da Economia Roberto Lavagna. 

 

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Empresas brasileiras instaladas na Argentina dão sinais de que essa onda já está a acontecendo. Animadas com o crescimento que chegou a 8% no ano passado e pode superar os 5% neste ano, companhias que já sofreram em diferentes momentos com as imprevisibilidades e crises no país redesenham suas estratégias e voltam a investir. “Os empréstimos cresceram 36% no ano passado, bem acima dos 27% que esperávamos”, diz o presidente do Itaú Argentina, Sergio Feldman. 

 

Desde o segundo semestre do ano passado, o Itaú está repassando financiamentos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para companhias que adquiram maquinário brasileiro. 

 

A carteira já tem 25 empresas, num total de US$ 55 milhões. “Linhas de crédito com prazo de quatro ou cinco anos como essa não existem aqui”, conta Feldman, que espera que a carteira de crédito do banco na Argentina, de 3,4 bilhões de pesos (cerca de R$ 1,4 bilhão) continue crescendo no mesmo ritmo acelerado em 2011. O maior crescimento deve ocorrer nos empréstimos para empresas de médio e pequeno portes. 

 

O banco retomou os investimentos na rede física de agências e gastou R$ 35 milhões para trocar todos os caixas eletrônicos no ano passado. Deve repetir o valor neste ano para atender os clientes de alta renda. 

 

E acaba de abrir uma nova agência do segmento Personnalité em Puerto Madero, ponto nobre da capital argentina e prova de que a recuperação de áreas urbanas degradadas é possível. Quem acredita no resgate de um país inteiro, que, como o Brasil, deu calotes na dívida pública e trocou de moeda inúmeras vezes no passado, está aproveitando o momento para investir. 

 

É o caso do executivo brasileiro Artemio Listoni, do grupo JBS, maior produtor mundial de carnes. Ele desembarcou em Buenos Aires há cinco meses para reorganizar o negócio. Depois de amargar prejuízos com o abate de bovinos por conta da falta de gado no mercado e restrições à exportação de carne, a líder mundial do setor mudou o foco e dará mais ênfase à produção de industrializados para o mercado interno. 

 

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Bolso cheio, carrinho vazio: família de Mario Miranda não teme o desemprego, mas
se assusta com a escalada dos preços e busca promoções diariamente no supermercado

 

Continuam fechadas sem perspectivas de reabertura três das seis unidades de abate. Porém, o grupo acaba de inaugurar uma nova fábrica em Pilar, que produzirá até três mil toneladas mensais de hambúrgueres. É o resultado de um investimento de US$ 50 milhões. Outros US$ 2 milhões serão usados para ampliar a produção de patês na unidade de Ponte Vedra até julho. 

 

Parte da estratégia da JBS é uma reação à mudança de hábitos de consumo dos argentinos causada pela disparada dos preços dos alimentos. “O consumo de carne in natura caiu. Está havendo uma migração dos tradicionais cortes nobres para produtos industrializados mais baratos. 

 

O argentino vai trocar o tradicional ojo de bife com batatas por hambúrguer, quibe, almôndegas ou pizza”, diz Listoni, que espera recuperar faturamento com a maior ênfase nos industrializados. A receita líquida deve crescer cerca de 10% neste ano, para algo em torno de R$ 650 milhões. O grupo tem três mil funcionários na Argentina, dois mil a menos do que quando comprou a Swift, em 2007. 

 

Uma das maiores críticas ao crescimento argentino, além da inflação, é a sua concentração em poucos setores: o automobilístico, altamente dependente das vendas ao Brasil, e o siderúrgico. Juntos, os dois setores responderam por 75% da performance da indústria argentina, segundo a consultoria ACM.  

 

A Votorantim Siderurgia, dona da Acerias Bragado, produtora de aços longos com capacidade de 300 mil toneladas, comemora crescimento de 15% do faturamento no ano passado, para US$ 250 milhões. “A construção civil está aquecida, os argentinos investem muito em ativos imobiliários”, diz o superintendente da Votorantim Siderurgia, Albano Chagas Vieira. 

 

Embora já tivesse o controle da empresa desde 2007, a Votorantim concluiu no ano passado a compra das últimas ações ainda detidas pela ex-controladora, a família Vara. Agora, projeta construir uma termoelétrica para garantir o suprimento de energia da siderúrgica.

 

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Os investimentos em infraestrutura, aliás, são um dos maiores gargalos para a sustentabilidade do crescimento na Argentina nos próximos anos. A onda de calor no fim do ano passado provocou cortes e ameaças de sanção a algumas distribuidoras, e é possível que neste ciclo de expansão volte a haver cortes seletivos para as empresas como houve em 2007, afirma o economista Mauricio Claverí, da consultoria Abeceb. 

 

Tentar atrair mais investimentos para o setor energético foi uma das razões de uma viagem recente da presidente Cristina Kirchner ao Oriente Médio. Outro problema é o aumento das pressões salariais. 

 

“Meu salário subiu só 10% neste ano, não está acompanhando os gastos”, constatou Mario Miranda, o pai de família que pesquisava os preços no supermercado de Buenos Aires. Nas negociações em curso, categorias como as dos comerciários pedem reajustes de até 35%. 

 

Para os exportadores brasileiros, a preocupação principal é com possíveis novas medidas protecionistas, já que o superávit brasileiro com a Argentina deve crescer para até US$ 5,5 bilhões neste ano, calcula a Abeceb. 

 

A relação comercial tem sido mais favorável ao Brasil nos últimos anos (veja gráfico). “Acho que o mais provável é que haja uma tentativa de negociar com setores, nos moldes do acordo voluntário fechado com o setor calçadista, mas não a imposição de sanções com alto custo político”, diz o economista Claverí.

 

A presidente Cristina Kirchner vem dando sinais de que entende os maiores riscos ao seu legado e vem adotando, pelo menos em discursos, uma postura mais pró-investimento. Um dos exemplos é a missão do Ministério da Economia que mandou para resolver até junho a última parcela da dívida que entrou em moratória, em 2001, com o Clube de Paris. 

 

Se for fechado, o acordo pode abrir uma larga janela de crédito para empresas argentinas hoje penalizadas no mercado internacional. O Brasil já viu esse filme e, como destino preferido dos investimentos estrangeiros na região, pode se beneficiar indiretamente da melhoria da Argentina. 

 

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Colaborou Hugo Cilo