16/05/2007 - 7:00
Cerberus na mitologia grega era o guardião do Hades, a morada dos mortos. Com três cabeças e corpo de dragão, fingia-se dócil para atrair as almas que, ao passar pelos portões do reino, conheciam o lado cruel do monstro que as transformava em prisioneiras eternas. Nos dias de hoje, Cerberus é um fundo de private equity que mostrou suas garras ao comprar a Chrysler, uma das Big Tree do mercado americano, da germânica Daimler por US$ 7,5 bilhões, numa operação que acabou com um turbulento casamento de nove anos. Tão logo a transação foi anunciada, especialistas passaram a se perguntar se a Chrysler teria o mesmo destino das almas seduzidas pela figura mitológica.
“Eles fizeram a melhor oferta financeira, mas ainda há dúvidas se saberão contribuir para a recuperação da Chrysler”, afirma Paulo Cardamone, diretor da consultoria CSM WorldWide. “Afinal, a reestruturação administrativa é só uma parte do problema.” A outra, segundo o consultor, é a falta de produtos. A desconfiança se justifica. Os gestores da Cerberus têm pouca intimidade com a indústria automotiva. Seu fundador, Stephen Feinberg, é um ex-páraquedista do Exército americano simpatizante das causas republicanas e avesso a aparições. Ao seu lado tem os republicanos Dan Quayle, ex-vice-presidente dos EUA, e John Snow, ex-secretário do Tesouro de George W. Bush, que assumiu a missão de ser a cara pública do fundo. O círculo político é quebrado por Wolfgang Bernhard, ex-presidente da Volkswagen, que auxiliou as negociações.
A ajuda de Bernhard será essencial. Na história recente da Chrysler essa é a terceira vez que a bancarrota aparece como um destino quase inevitável. A primeira na década de 80, foi revertida graças a uma reestruturação comandada pelo lendário Lee Iacocca. Na ocasião, Iacocca foi à televisão pedir aos americanos que comprassem carros Chrysler, ao mesmo tempo em que descobria o rentável nicho das minivans. A segunda ocorreu há nove anos, quando a solução veio do outro lado do Atlântico. O casamento Daimler e Chrysler, uma aquisição de US$ 36 bilhões, foi alardeado como uma “fusão de iguais”. Não deu certo. As diferenças entre as culturas germânica e americana falaram alto e o casamento chegou ao fim. Agora, a Chrysler volta a ser de domínio americano. Seus novos donos têm sede em Nova York e são considerados a mais nova superpotência de Wall Street, um título de peso para um fundo de apenas 15 anos.
Fundado em 1992 com US$ 110 milhões no caixa, o Cerberus é uma megapotência de US$ 16 bilhões que administra cerca de 30 empresas com faturamento conjunto de US$ 30 bilhões. “Eles têm uma estratégia agressiva de crescimento que se distingue por um excelente trabalho de relacionamento”, atesta Vítor Madeira, da Value Partners. Daí a aproximação com nomes de peso no cenário político americano e com profissionais especializados nos negócios em que estão interessados. No caso da Chrysler não foi diferente. Bernhard foi chamado para a companhia para essa operação. Logo, mostrou resultados ao conseguir o apoio do UAW, sindicato dos trabalhadores de Detroit, para a compra, a despeito de um passivo previdenciário de US$ 19 bilhões. “Certamente o fundo negociou salvaguardas com o sindicato para que eles aprovassem a negociação”, afirma Diogo Clemente, ex-diretor de RH da Ford.
US$ 7,5 bilhões foi o valor da compra da terceira maior montadora americana
Com o negócio, a indústria automotiva viverá pela primeira vez a experiência de ver uma montadora nas mãos de um grupo financeiro. A conseqüência disso ainda é um mistério. Analistas apostam que haverá uma fusão entre o braço financeiro da empresa e o GMAC – ex-banco da GM que foi comprado pelo Cerberus no ano passado. Ao mesmo tempo, uma profunda reestruturação seria feita na montadora para saneá-la e permitir que o fundo a revendesse em pouco tempo. Vítor Madeira, da Value, engrossa o time que acha que Feinberg é mais ambicioso. “Ele tentará criar um novo modelo de negócios para a indústria automotiva americana.” O guardião do futuro responde por Cerberus.