Presidente da Venezuela ordenou treinamento militar para civis como parte da defesa do país contra a ameaça americana. O que se sabe sobre essas milícias, que viraram alvo de chacota de Donald Trump?São dias de incerteza na Venezuela. A presença militar dos Estados Unidos em águas internacionais no Mar do Caribe gerou desconfiança, rumores de deserções no seio da cúpula chavista e vazamentos. Em uma carta enviada a Donald Trump – primeiro publicada pela imprensa, depois confirmada pelo governo venezuelano – Nicolás Maduro rejeita as acusações de que a Venezuela desempenha um grande papel no tráfico de drogas e pede diálogo.

Ele aponta na carta que apenas 5% das drogas produzidas na Colômbia são enviadas pela Venezuela. Segundo ele, 70% desse montante foi capturado e destruído pelas autoridades venezuelanas.

“Presidente, espero que juntos possamos derrotar as falsidades que mancharam nossa relação, que deve ser histórica e pacífica”, escreveu Maduro. “Essas e outras questões estarão sempre abertas para uma conversa direta e franca com seu enviado especial (Richard Grenell) para superar o barulho da mídia e as notícias falsas.”

Publicamente, no entanto, a cúpula chavista reage com aparente sangue-frio. Diante da ameaça do “império norte-americano”, o ministro da Defesa, Vladimir Padrino, anunciou exercícios militares na ilha La Orchila. Além disso, foram realizadas jornadas de treinamento militar entre os funcionários de empresas estatais e foi anunciada a criação de 5.300 unidades comunitárias de milícias para treinar civis em tarefas de defesa.

“Coação social”

“No próximo sábado, 20 de setembro, os quartéis, a Força Armada Bolivariana, irão ao povo, irão às comunidades, para convocá-las, revisar, ensinar a todos os que se alistaram, vizinhos e vizinhas, o manuseio do sistema de armas”, disse Maduro.

E quem são os escalados para esse alistamento? “Na Venezuela, existe um mecanismo de coação social. Aqueles que dependem de ajuda direta do Estado, como muitos idosos, se alistam porque existem mecanismos de controle que não são abertos, mas que estão ativados”, disse à DW, de forma anônima, uma pessoa do meio acadêmico da Venezuela.

“Há pessoas que participam de programas sociais que, embora reduzidos, representam alguma renda, ou temem perder questões relacionadas a algum tipo de cota para um neto, uma filha etc”, explica.

Treinamentos em bairros pobres

Se os vídeos que circulam nas redes sociais sobre treinamento para civis pretendiam mostrar o poderio defensivo da Venezuela, o efeito foi exatamente o contrário.

A fragilidade das pessoas que aparecem nas imagens recebendo treinamento provocou até mesmo a zombaria de Trump: “ULTRA-SECRETO: Surpreendemos a milícia venezuelana em treinamento. Uma ameaça muito séria!”, escreveu sarcasticamente o republicano em sua rede social, ao lado de imagens de várias mulheres civis em plena aula militar, entre gritos e risadas dos espectadores.

“As milícias bolivarianas sempre foram um instrumento de organização política mais do que de ‘defesa’ real. Mas têm suas raízes no conceito comunista do ‘povo em armas’ e de que a defesa da ‘revolução’ é um ato popular. O fato de algumas pessoas de bairros marginalizados consideradas ‘leais’ à revolução terem recebido armas e um pouco de treinamento, mais ideológico do que militar, provavelmente cria mais riscos de violência em seus bairros do que um fator real na defesa de seu povo”, disse à DW Evan Ellis, pesquisador de estudos latino-americanos na Escola Superior de Guerra do Exército dos Estados Unidos.

O chavismo dá a entender que são muitos os civis em treinamento militar, mas ninguém sabe o número real. O regime tampouco revela seu método de recrutamento, que é relatado à DW de forma anônima: “Como o sistema trabalhista está destruído, as pressões e coações vêm das instâncias comunitárias. O chefe do quarteirão, que também distribui a comida, liga para as pessoas, faz visitas… Essa coação cara a cara tem um efeito para que se inscrevam. São pessoas, em sua maioria, muito, muito pobres. Há uma porcentagem de pessoas que não está lá livremente”.

Os bairros mais pobres da Venezuela sempre foram o bastião político do chavismo. Ao mesmo tempo, dessas regiões saíram muitos dos emigrantes descontendes com o país nos últimos tempos. Os que não têm a opção de sair, acabam encurralados nos jogos de guerra ordenados por Maduro. Resta saber se eles realmente atuariam no caso hipotético de um ataque dos Estados Unidos.

“Fala-se pouco sobre o assunto”

“Considero improvável uma ‘invasão’ ou ‘ocupação’ por parte dos EUA, em que as forças populares leais a Maduro tenham que oferecer resistência popular. Não só porque a grande maioria dos venezuelanos acolheria qualquer pessoa que os libertasse do regime corrupto, economicamente desastroso e opressivo de Maduro… mas, mais importante ainda, porque o tipo de ação militar provavelmente contemplada seria rápida, precisa e de curta duração. Em relação a essas milícias, seria planejado fazer todo o possível para evitar idosos com rifles, a fim de não ter baixas desnecessárias na população civil”, acredita Evan Ellis.

Enquanto isso, a vida cotidiana desde que os Estados Unidos iniciaram sua operação perto da Venezuela segue seu curso. “Há inquietação, há expectativa… Mas fala-se pouco sobre esse assunto, só se comenta com pessoas em quem você confia muito, porque a Venezuela passou a ter níveis de repressão sem precedentes, algo documentado em um relatório recente das Nações Unidas”, diz o cientista político Andrés Cañizález à DW.