25/11/2016 - 0:00
O tinto Quinta do Seival Castas Portuguesas, da vinícola Miolo, me chamou a atenção para o enólogo Miguel Almeida. Quando provei a sua primeira safra, em meados dos anos 2000, soube que a vinícola, naquela época, contava não apenas com a consultoria do francês Michel Rolland como com a presença de um enólogo português. Desse então, aprecio esse vinho, que é vendido por R$ 93,44 no site da Miolo, e acompanho o trabalho desse profissional, que se apaixonou pelo Brasil e é um dos maiores defensores do vinho nacional – seu apoio ao nosso vinho é, muitas vezes, mais veemente do que o de muitos enólogos locais. Para a reportagem sobre o interesse dos enólogos estrangeiros no vinho brasileiro, que foi publicada na versão impressa da revista Menu de outubro, a publicação de enogastronomia da Editora Três, trocamos vários e-mails. Confira a sua história.
Como começou o seu trabalho como enólogo?
De 1997 a 2003, estudei e teorizei-me no Instituto Superior de Agronomia, em Lisboa, cursando Engenharia Agro-Industrial, com especialização em Enologia. Comecei a trabalhar como enólogo em 2002 e no Douro. Foi com as uvas da mal amada sub-região do Baixo Corgo, que fiz a minha primeira vindima. Hoje, já trabalhei em 20 vindimas, uma na Alemanha, cinco em Portugal e 14 no Brasil.
Como você chegou na Miolo?
Foi em 2003, quando ouvi falar pela primeira vez de vinho brasileiro e da vinícola Miolo pelo pesquisador e professor Jorge Ricardo da Silva. Nessa época, muitos dos meus colegas de turma decidiram fazer vindimas nos Estados Unidos, na Austrália e no Chile, e eu decidi sozinho pelo Brasil. Em 2004, fiz a minha primeira vindima brasileira na Serra Gaúcha como estagiário. Era um estágio no qual eu já participava de decisões e geria uma equipe. Isto foi muito importante para mim, recém-saído da universidade e sem nenhuma tradição no ramo vitivinícola. A experiência mais enriquecedora e definidora da minha vida foi tida com o vinho brasileiro da Miolo. Em 2004 trabalhei dois meses, ganhei R$ 500 por mês. A viagem foi custeada por mim foi três vezes mais cara do que os dois salários ganhos. Mas voltei em 2005, em 2006. Em 2007, vinifiquei 800 toneladas de uvas, ajudado por mais cinco pessoas sem conhecimento, que foi a primeira vindima da Quinta do Seival na propriedade. A partir de 2008, fui contratado pelo Adriano Miolo.  
Quais as suas impressões sobre o vinho brasileiro antes de vir trabalhar aqui?
Até 2003 não conhecia o Brasil como país produtor de vinhos.
Quais são hoje as suas impressões sobre os vinhos brasileiros?
As impressões são e sempre foram positivas. Pelo que leio da história do vinho brasileiro, fui feliz no ano de chegada ao Brasil. O novo vinho brasileiro nasceu em 2004 e eu estive lá. Os vinhedos em espaldeira, os vinhedos plantados com combinação acertada de porta-enxerto e casta [clonada ou não], vinhedos plantados em regiões diferentes da Serra Gaúcha originaram os seus primeiros vinhos em 2003, 2004. O vinho brasileiro que me entusiasma entrega-me acidez, acidez que reforça sua tanicidade, confiando ao vinho um dos seus principais parceiros, a comida. O respeito pela origem permite sempre conseguir vinhos brasileiros frescos e angulosos, típicos das regiões úmidas, características também muito semelhantes às das regiões frias.     
Quais as principais dificuldades para um enólogo estrangeiro trabalhar no Brasil?
As mesmas dificuldades vivenciadas por um enólogo brasileiro, aquelas inerentes ao ano vitícola. Um enólogo que sempre fez vindimas em regiões de “desertos irrigados” [regiões quentes, fáceis de fazer e vender] vai “sofrer” no sul do Brasil e sentir-se-á em casa no nordestino Vale de São Francisco.
Em sua opinião quais são os diferenciais que os enólogos estrangeiros podem trazer para o Brasil?
O fato de ser estrangeiro já é em si o grande diferencial. É uma outra visão, outra cultura, outra habilidade social e emocional. Para mim o grande segredo do vinho reside na interpretação que o homem faz da natureza e neste processo ele sozinho não basta, necessitando da entrega e da emoção de outros homens. 
E como foi trabalhar com Michel Rolland, polêmico enólogo francês que foi consultor da Miolo?
O Michel Roland, ao contrário dos exemplos que eu tenho de consultorias de vinho no Brasil e em Portugal, possui uma vasta equipe de enólogos assessores e um laboratório de vinhos com nível de investigação científica que fica na França. E ele faz um trabalho de raíz, que começa no vinhedo e termina na garrafa. Não é apenas conversa e nariz na taça. Duas coisas que me impressionaram nele: a sua exímia capacidade de prova, Sabia sempre onde estavam às cegas os melhores vinhos, sem nunca os ter vinificado. Chegávamos a degustar das 8 horas às 18 horas perto de 150 vinhos.  
Raramente o vi a corrigir um corte. Ele provava todos os componentes por separado e nos orientava para usar tanto deste tanque, tanto do outro e outro. A segunda coisa é totalmente contrária aquilo que no célebre documentário Mondovino mostrou. Ele nunca nos orientou a comprar determinado insumo enológico, marca de barrica ou a adotar determinada tecnologia. Não prega uma enologia aditiva, tanto que depois dele deixamos de utilizar enzimas, taninos. Ele nos “encorajou” a fazer fermentações espontâneas. Nunca descreveu um vinho com adjetivação, nunca descrevia o nariz do vinho e sempre falava em centro boca. Lindo vinho, expressão que ele usava muito.