23/12/2011 - 21:00
O sonho do estudante de filosofia Diego não se realizou. Ele vinha participando, desde meados de outubro, do Ocupa Sampa, manifestação paulistana inspirada no movimento Occupy Wall Street. Acampado na avenida Paulista, uma das mais importantes de São Paulo, Diego (que não revelou o sobrenome nem se deixou fotografar) esperava mobilizar a sociedade para organizar uma manifestação que paralisasse o trânsito sempre intenso da avenida. A ideia era protestar contra, digamos, tudo isso que está aí. “Queremos mudar o capitalismo financeiro, que destrói o meio ambiente, e implantar um modo de produção sustentável”, diz ele. “Só reduzindo o poder dos bancos vamos conseguir garantir o acesso de todos à saúde e à educação.” Parece vago (e é mesmo), assim como são vagas as teses defendidas pelos manifestantes nos Estados Unidos. No entanto, há outras semelhanças entre a avenida Paulista, a Esplanada dos Ministérios em Brasília e o Zucotti Park, no centro de Manhattan. Na sexta-feira 16, Diego e seus companheiros foram retirados do vão livre do Museu de Arte de São Paulo.
Manifestante mascarado em Nova York: no cerne dos protestos, o temor de que bancos grandes
demais acabem minando a democracia americana
Os manifestantes de diversas cidades dos Estados Unidos vêm sendo desalojados pela polícia, com razoáveis doses de violência. Aqui e lá, eles prometem voltar. E, de fato, têm remontado seus acampamentos quando a repressão se distrai. Definir esse movimento é mais fácil por suas negativas. O Occupy Wall Street não é uma manifestação contra o governo – tanto que algumas lideranças sindicais americanas e membros mais à esquerda do Partido Democrata, do presidente Barack Obama, manifestaram um cauteloso apoio. Também não é uma manifestação socialista. Não se veem bandeiras vermelhas, e a máscara de Guy Fawkes da foto na página anterior é, de longe, mais popular do que as efígies de Che Guevara ou de Karl Marx. Também não é um movimento organizado. Ao contrário, as reivindicações variam de acordo com o lugar. Em Nova York, passam pelo pedido de nacionalização do Federal Reserve, o banco central americano. Já na Califórnia, os “ocupantes” pedem o fim do aumento das mensalidades do ensino superior. Seus colegas em Denver e em Boston discutiam desde o acesso à saúde pública até a necessidade de reciclar o lixo.
Se os acampados nas praças não buscam derrubar o governo, não pretendem implantar o socialismo nem sequer defendem as mesmas bandeiras, o que, afinal, os motiva a enfrentar o crescente frio do outono? Desordenadamente, eles querem garantir que sua fatia do sonho americano não será reduzida por causa do crescente poderio do sistema financeiro. Esse é o fio condutor da maioria das manifestações que começaram frouxamente em setembro no quarteirão financeiro de Nova York e se espalharam rapidamente não só por outras cidades dos Estados Unidos, mas pela Europa e América Latina, chegando até a avenida Paulista e a Esplanada dos Ministérios, onde os “ocupantes” levantaram as bandeiras da moralidade pública e do combate à corrupção. A preocupação é justificada. Nas duas últimas décadas, a onda de privatização e desregulamentação das economias desenvolvidas gerou uma hipertrofia dos sistemas bancários. Com isso, os bancos – ao contrário da maioria das empresas – tornaram-se grandes demais para quebrar. Esse tamanho descomunal não apenas garantiu-lhes poder político como também facilitou seu acesso aos recursos públicos.
Manifestantes desalojados pela polícia em Denver (acima), e acampados em Brasília (abaixo):
pauta de reivindicações ampla vai da reciclagem do lixo ao combate à corrupção
Com uma capacidade de pressão ímpar na história, Wall Street evitou o pior, em 2008, recorrendo à ajuda estatal. Apenas para resolver metade da crise de crédito imobiliário de há três anos, o governo americano injetou US$ 1,5 trilhão em dinheiro dos contribuintes no sistema. E, se as contas tivessem sido mais rigorosas, essa cifra poderia ter facilmente dobrado. Na época da negociação, a ameaça era de que, se os bancos quebrassem, milhares de pequenos poupadores perderiam seu suado dinheirinho e muitos mutuários ficariam sem suas casas. Na prática, a retração do crédito levou a algumas dezenas de milhares de despejos e a um sem-número de falências individuais. Socorrer grandes bancos enquanto algumas dezenas de milhares de famílias perdem suas casas é tremendamente impopular, mas o prato fica ainda mais indigesto quando os executivos desses bancos continuam recebendo bônus bilionários, supostamente por um excelente desempenho. Essa contradição levou os estudantes às praças.
E eles logo descobriram que não estavam sozinhos. Em outubro, ao dirigir-se aos manifestantes em Nova York, o Prêmio Nobel de Economia Joseph Stiglitz resumiu bem o que poderia ser uma declaração de princípios do movimento. Proibido pelas autoridades de usar um megafone para que o barulho não incomodasse a vizinhança, ele fez um discurso pausado, para que as frases pudessem ser repetidas pelos presentes. Apesar do improvisado telégrafo sem fio, a mensagem foi transmitida sem distorções. “O papel do mercado financeiro é importante, pois ele aloca capital e administra riscos, mas eles tomaram decisões erradas e criaram mais riscos em vez de diminuí-los”, disse Stiglitz. “Agora, nós estamos arcando com esses erros, em um sistema que socializa as perdas e privatiza os ganhos. Isso não é capitalismo nem economia de mercado e, se as coisas continuarem assim, não vamos conseguir criar uma sociedade justa.”
Bingo, como diriam os admiradores de Stiglitz. Mesmo que não especificamente declarada, a meta do movimento é propor alternativas à desigualdade crescente da economia dos Estados Unidos. Nesse sentido, apesar de a forma lembrar os “indignados” de maio em Madri – ou, para os saudosistas, as manifestações de maio de 1968 em Paris –, o conteúdo é tão genuinamente ianque quanto a torta de maçã. O mote do movimento é contrapor os 99% de americanos que não trabalham nos bancos nem ocupam assentos na presidência de grandes empresas ao 1% dos que têm acesso a opções de ações, bônus bilionários e à proteção do Estado em caso de derrapadas. A preocupação é legítima. “Qualquer que seja a métrica, os Estados Unidos são hoje um país em que o dinheiro está concentrado nas mãos de menos pessoas”, escreveu Paul Krugman, Prêmio Nobel de Economia de 2008 e colunista do jornal The New York Times. A consequência disso, escreveu ele, é a pior das heresias na terra do Tio Sam. “Essa concentração de renda ameaça tornar os Estados Unidos uma democracia só em termos nominais.”