Quando a equipe de comunicação do governo Lula III decidiu que o slogan desta nova temporada do petista no comando do País seria “Brasil — União e Reconstrução” não fazia ideia de quão bem essa frase serviria. Não bastando tapar a sangria desatada deixada pelo governo anterior e arrumar a casa nesse começo de mandato, Lula deu outros passos (e alguns em direções opostas). A derrubada do Teto de Gastos deu lugar à construção do Arcabouço. As isenções fiscais eleitoreiras de Bolsonaro foram substituídas por um projeto de Reforma Tributária.

E se só isso já seria o bastante, há dentro do governo vozes ecoando antigos cânticos dos partidos mais alinhados com a esquerda, e dar vazão a elas significa mexer em reformas realizadas nos últimos anos. A Trabalhista e a Previdenciária.

Revisar as relações de trabalho e avaliar as distorções das novas métricas de aposentadoria não são ideias ruins e nem devem ser completamente descartadas, mas levantar esses assuntos enquanto duas outras grandes reformas estão em jogo eleva substancialmente a incerteza que tanto atrapalha a retomada da economia e coloca em risco até a aprovação (ao menos nos moldes que o governo espera) dos projetos encabeçados pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad.

Enquanto Haddad caminha em direção a um centro mais comedido e liberal, outros integrantes do governo entendem a importância de haver vozes dissonantes e conectadas com pautas mais caras e sensíveis aos partidos de esquerda. A questão trabalhista é uma das mais contundentes.

O que pode acontecer com a reforma trabalhista?

O ministro do Trabalho, Luiz Marinho, é um antigo aliado de Lula. Ocupou este mesmo cargo entre 2005 e 2007, quando saiu para comandar o Ministério da Previdência Social até 2008 e depois se tornou prefeito de São Bernardo do Campo (berço político de Lula), até 2016. Atual presidente do PT em São Paulo, Marinho foi presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e esteve à frente de negociações históricas como uma reversão de 10 mil demissões em montadoras no final da década de 1990.

Dentro do goveno, muitos acreditam que Marinho ficar indiferente à Reforma Trabalhista de Michel Temer pode ser visto como enorme contrassenso. E por isso exaltar a relevância dos sindicatos nas negociações de trabalho, falar sobre formalização e do fim do emprego precarizado é uma forma de o governo se manter conectado a uma base historicamente relevante.

E ainda que Marinho tenha sido categórico ao dizer que não haverá revogação total da Reforma Trabalhista e que não há chances de o imposto sindical voltar, há no Ministério estudos para reversão de pontos específicos de regras que são, nas palavras dele, “cruéis” e que “inibem a geração de empregos formais”.

Para Marinho, a reforma “foi uma tragédia em muitos aspectos”. Um deles foi a determinação de que o trabalhador tem de arcar com os honorários do advogado da empresa caso perca uma ação judicial. “É uma chantagem ao trabalhador. Inibe que ele busque seus direitos”, afirmou.

Há ainda os temas que envolvem atualização das leis para a realidade do trabalho. A explosão do número de vagas envolvendo aplicativos de transporte é um desses assuntos em voga. A perspectiva do ministro é que até o fim do primeiro semestre a proposta de regulamentação dessa categoria avance para então ser enviada ao Congresso.

“Estamos criando um grupo de trabalho colegiado, com representantes do governo, das plataformas de entrega, dos motoristas, com advogados do trabalho e com economistas.”

Segundo ele, o plano é regulamentar observando as especificidades da categoria, a qualidade do trabalho, a remuneração, as condições do emprego, a proteção do trabalhador e os direitos e deveres de ambas as partes.

Como fica o home office?

Ainda que date de 2017, a Reforma do Trabalho já está atrasada. A pandemia criou novas formas de relação de trabalho e trouxe a necessidade de se estruturar, por exemplo, o home office. Nesse sentido, Marinho diz ser preciso ampliar a discussão para encontrar métricas que protejam o trabalhador e deem garantia de produtividade para as empresas.

Para José Carlos Viana, professor de macroeconomia da Unicamp e que estava no grupo de transição do Ministério do Trabalho, revisar a CLT precisa ser algo constante. “As regras do trabalho devem ser como um Plano Diretor de cidades, revista de tempos em tempos para serem mais produtivas”.

Mas quando olhamos os números da produtividade no Brasil, índice que a Reforma Trabalhista prometia ajudar a impulsionar, os resultados não são bons. Depois de cinco anos, o ritmo de evolução da eficiência segue patinando em uma evolução média inferior a 0,6% ao ano, número bastante similar ao verificado entre 2000 e 2014, quando houve picos superiores a 1,5% em anos de elevação do PIB.

Emprego e empregabilidade são parte da função de estrutura econômica e da força de trabalho adequada, e o Brasil tem problemas nessas duas frentes desde a década de 1960. A ideia de que revogar a Reforma Trabalhista vai garantir emprego é tão equivocada quanto àquela que determinava que aprovar a nova CLT criaria vagas.

Isso se dá porque os ganhos de eficiência não dependem só da condição de trabalho. Segundo Fernando Veloso, coordenador do Observatório da FGV-Ibre, o crescimento do indicador depende da conjunção da estabilidade macroeconômica, que envolve reformas visando a melhora do ambiente de negócios e da eficiência da atividade e o crescimento da economia mundial.

Na mesma linha, o economista VanDyck Silveira, CEO da Humaitá Digital e cofundador da Mind Academy, acha falaciosa a ideia de que mais regras trabalhistas são garantia de mais e melhores empregos.

Com todas essas incertezas sobre como serão conduzidas eventuais mudanças na legislação trabalhista, o governo Lula acaba ferindo duas das três palavras mágicas que repetiu diversas vezes durante a campanha eleitoral: “O Brasil precisa de previsibilidade, estabilidade e credibilidade”.

Sem elas a primeira reação dos donos de bens de capital é sentar no caixa para ver como vai se comportar a economia e quais surpresas virão por aí. Esse movimento torna a retomada da atividade mais morosa, impede um crescimento da renda do brasileiro e afasta o Brasil de um resultado do PIB acima de 1%.

A reforma da previdência vai passar incólume pelo governo Lula?

No dicionário Houaiss, a palavra previdência é sinônimo de diligência. Mas, quando se trata da Previdência Social do Brasil, a discussão acaba sendo sempre um pouco imprudente.

Primeira reforma do governo Bolsonaro, a nova Previdência alterou o sistema de seguridade social do Brasil e foi desenhada em exatas cinco semanas durante a gestão de Michel Temer em 2017 — e só não foi aprovada porque escândalos envolvendo donos de empresas e malas de dinheiro tiraram o foco do Congresso.

Mesmo sem interesse em revogar a Reforma, Lupi quer levar para o Congresso discussões sobre a redução do benefício em caso de morte ou invalidez. Lupi já foi criticado publicamente por Lula e Rui Costa por falar da Previdência, mas sabe que este é um tema bastante caro aos servidores estatutários de todo o Brasil e com grande apelo popular para o PDT.

Há uma explicação para esse descuido na hora de tratar a Previdência. Nenhum país no mundo sabe exatamente como lidar com a população que vai envelhecer cada vez mais, enquanto os nascimentos tendem a diminuir.

E esse dilema da filosofia econômica, o ex-presidente Michel Temer nem se propôs a resolver. Ele queria passar um recado ao mercado de que o governo seria capaz de arcar com o benefício de 40,1 milhões de brasileiros. E isso ele fez.

Aumentou o tempo para se aposentar, reduziu benefícios, elevou a burocracia e mudou a regra de cálculo para estipular o valor do provento. O resultado? A defasagem no benefício de quem já está enquadrado nas novas normas é de 35% na comparação com pessoas aposentadas antes da Reforma (dados do Ipea). Isso sem contar a perda de poder de compra de 40% dos aposentados desde 2018.

Temer realmente resolveu o problema fiscal no longo prazo? Não, segundo o ministro da Previdência, Carlos Lupi.

A relação entre contribuição previdenciária e o número de beneficiários continuará esticando a corda e a Reforma tirou contribuintes de modo mais célere que a evolução da população.

“Ela não ajudou a melhorar as contas públicas como se previa inicialmente, e de quebra ainda deixou de fora 20 milhões de brasileiros que não dão contribuição para a Previdência”, disse Lupi, fazendo alusão ao aumento do trabalho informal.

Como o governo se movimenta para conseguir alterações

Diante desse problema, o Ministério da Previdência trabalha em soluções que envolvam mais transparência nos processos internos, universalização de benefícios e formas de compensar as perdas naturais de renda que uma aposentadoria tende a criar. “Um cartão, por exemplo, que unifique benefícios de ônibus, redução de juros no consignado, cartão social. Tudo isso junto facilita para o controle do governo e acesso do beneficiário.”

O valor médio do benefício caiu de R$ 1.784,79 (em 2019), já considerada a inflação, para R$ 1.594,92 (dezembro de 2022). Com menos recursos, os beneficiários estão mais endividados, o que prejudica a política de estímulo ao consumo de Lula.

Para Leonardo Rolim, consultor da Câmara para assuntos legislativos e especialista em Previdência, a Reforma de Temer visou reduzir as desigualdades do sistema previdenciário brasileiro. “E isso foi conseguido”, disse.

Segundo ele, o sistema antigo favorecia os mais ricos. Já Adriane Bramante, presidente do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP), ressalta que medidas que reduzem o benefício levam uma parte maior da população à miséria.

Enquanto ministros estudam quais paredes vão ser quebradas há mudanças estruturais fundamentais para que a economia ande. A mais importante, hoje, é o Arcabouço Fiscal. Após uma longa e dramática negociação, o governo acertou o passo com o Congresso. Na quarta-feira (17) os deputados aprovaram a urgência do texto que deve ir a plenário em breve.

Essa celeridade para aprovar o Arcabouço vai sair cara para o governo, e vai cortar em nervos que doem para o PT: Saúde e Educação. Haddad assume de vez o cargo de personagem mais ao centro dentro de um governo de centro-esquerda e com essa guinada ao centro deve lograr êxito e tirar o governo Lula da sinuca de bico com o centrão.

E as mudanças já inseridas pelo centrão são um teste para o PT pois incluem o Fundeb e orçamentos de saúde e educação nos gatilhos de austeridade.

Para economistas liberais isso mostra comprometimento fiscal, mas é um problema para o programa de desenvolvimento social que o PT persegue. O presidente Lula é do tipo que antecipa jogadas, e se ele aceitou cortar na carne é porque já tem um plano.

Fontes próximas ao petista dizem que há uma discussão fechada sobre uma solução que também foi cogitada por Paulo Guedes, o superministro da Economia de Bolsonaro. A desvinculação do Orçamento da Saúde e da Educação. O que isso significa? Mais liberdade para gastar.

Também está em estudo levar ao STF a criação de um mínimo constitucional por habitante a ser investido pelo governo nessas áreas. É a típica reforma em casa que você nem termina e já sabe que vai precisar do pedreiro para fazer remendo.

 

Leia a seguir entrevista com o ministro do Trabalho, Luiz Marinho

Luiz Marinho, do Ministério do Trabalho: “Imposto sindical não vai voltar” (Crédito: Pedro Ladeira)

O senhor vai revogar a Reforma Trabalhista?
Não. Este não é nosso plano. Reconhecemos que há pontos de atenção e em alguma medida foi uma tragédia para a formalização de que o Brasil precisa. Tem que mudar, mas não revogar.

E o imposto sindical?
Já disse mais de uma vez e mantenho. O imposto não vai voltar. Mas queremos, sim, que os sindicatos tenham um papel importante nas negociações trabalhistas porque a Reforma Trabalhista enfraqueceu a negociação e destruiu o papel dos sindicatos.

Como lidar com o impasse dos motoristas de aplicativo?
Trabalhamos em uma solução para regulamentar a categoria. Essa é uma das mudanças que a tecnologia impôs ao mercado de trabalho, e por isso precisa adaptar a lei atual. Vamos montar um grupo de trabalho com entregadores, motoristas, representantes das empresas, economistas e centrais sindicais. A ideia é abrir o diálogo para encontrar soluções justas a todos.

E quando o tema deve avançar?
Trabalhamos com a perspectiva de terminar os estudos no fim do primeiro semestre, mas o encaminhamento para o Congresso deve ficar para o segundo semestre.

Leia a seguir entrevista com Carlos Lupi, ministro da Previdência Social

Carlos Lupi, da Previdência Social: “Meu objetivo é mitigar as distorções” (Crédito: Eduardo Anizelli)

O senhor vai revogar a Reforma da Previdência?
Não. Não é sobre dizer que tudo que foi determinado está errado. Podemos melhorar a qualidade de vida dos aposentados, com sustentabilidade financeira do serviço.

Mas há problemas graves nela?
Vejo alguns muito graves e outros que podem virar um problema no futuro. Meu objetivo é mitigar as distorções, mas entendendo que algumas coisas deram certo, outras não.

O que é mais urgente?
As pensões por morte e por invalidez. Pela regra de 2019, quem perdeu alguém vai receber 60% do que recebia de pensão. A redução no valor da aposentadoria por invalidez também é uma questão muito grave. Diminuir esse beneficio é tirar a renda de famílias inteiras.

E como mudar isso?
O primeiro passo é discutir no Conselho Nacional da Previdência. Depois é abrir diálogo com Casa Civil, Planejamento, Fazenda… Em um terceiro momento cria-se um texto e então começa a batalha no Congresso.

E em que pé está esse processo?
Incipiente, começando agora. Não queremos fazer nada de forma corrida. Se é para mexer, que seja bem feito.