29/03/2025 - 15:50
Governo interino sírio prometeu dar fim ao narcotráfico, sobretudo do captagon. Porém regime Assad criou condições para o comércio ilícito se perpetuar, mesmo após a queda do ditador.O Iraque apreendeu recentemente uma das maiores cargas da droga ilegal captagon já interceptadas: mais de uma tonelada de pílulas escondida num caminhão a caminho da Turquia. Aparentemente o tráfico provinha da Síria.
Nome comercial da fenetilina, essa substância de efeito anfetamínico, altamente viciante, é muito difundida entre os Estados ricos do Golfo Pérsico. O achado suscita a pergunta: por que cargas tão grandes de captagon ainda circulam, vários meses após a queda do regime autoritário de Bashar al-Assad?
Durante os anos da guerra civil, a droga tornou-se uma das maiores fontes de renda para Damasco: sob as sanções por crimes de guerra, na verdade, era uma das únicas maneiras de Assad conseguir suas somas bilionárias, muito acima do orçamento governamental regular.
No início de dezembro de 2024, o regime foi derrubado por uma coalizão de grupos oposicionistas liderada pela organização paramilitar Hayat Tahrir al-Sham (HTS), a qual formou um governo interino. Em discurso, o líder da HTS, Ahmad al-Sharaa, comprometeu-se a “purificar” a Síria do narcotráfico, combatendo os produtores e vendedores de captagon. Em janeiro foi assinado um acordo com a Jordânia para esse fim.
O tiro que saiu pela culatra
Em parte, a promessa não se cumpriu devido aos continuados problemas de segurança da Síria, pois o governo de transição não dispõe dos recursos financeiros, humanos, de tempo ou equipamento de vigilância para dar fim à fabricação e contrabando da droga.
O Newlines Institute – que, a partir de Washington, desde 2016 acompanha os relatórios sobre o tráfico de captagon – registrou em 2024 que Assad vinha perseguindo as redes de contrabando, provavelmente em resposta à pressão exercida por outros países árabes.
A Arábia Saudita e a Jordânia, por exemplo, consideram o estimulante anfetamínico um problema sério para sua própria população, além de uma ameaça à segurança. Por isso vinham tentando convencer a Síria a coibir o tráfico, em troca de melhores relações regionais.
Devido à repressão pelo regime Assad, “no último ano vimos um vazamento do tráfico de captagon para além da Síria, na Turquia, Alemanha, Holanda, Egito e – curiosamente – até no Kuwait”, observou a especialista na relação crime-conflito do Newlines Institute Caroline Rose, durante um painel virtual promovido pelo Centro Carnegie para o Oriente Médio.
“O regime não sabia na época, mas estava preparando as condições para esses negócios ilícitos prosperarem mesmo após a sua queda”, pois as redes de contrabando e laboratórios desenvolveram-se, tornando-se menores, mais móveis e flexíveis. Tudo isso “é muito propício a tornar o comércio captagon mais transregional, ágil e muito difícil de combater”.
Produção de captagon descentralizada
Fora da Síria, é provável que grupos apoiadores do regime Assad, e antes suspeitos de envolvimento no narcotráfico, ainda participem do comércio de captagon. Quantidades modestas estariam sendo produzidas no Vale de Bekaa, um reduto histórico do Hezbollah no sul do Líbano.
No Iraque, as matérias primas veem do Irã, sendo enviadas para processamento a laboratórios locais ou mais distantes. As milícias pró-iranianas forneceriam todo o apoio logístico, revelou o ativista antidrogas iraquiano Mohammed al-Yasiri ao veículo de idioma árabe Al Hurra.
Algumas das cargas recém apreendidas ainda são estoques do tempo do regime Assad, mas a droga continua sendo fabricada dentro da Síria, afirmou em relatório o vice-diretor do Centro Carnegie para o Oriente Médio, Mohanad Hage Ali.
“No norte da Síria, a rota de contrabando do captagon para a Turquia dependia da colaboração entre o regime e grupos militantes do Exército Nacional Sírio [SNA], apoiado pela Turquia.” Assim, apesar do que ocorreu em 2024, a produção “prossegue em áreas dominadas pela oposição, inclusive as no norte, controladas pelo SNA”.
No sul, a produção também se mantém, por exemplo, na região de Sweida, com membros importantes da comunidade local envolvidos nos negócios. “A capacidade de produzir captagon foi descentralizada”, prossegue Hage Ali. “Alguns grupos filiados à oposição [síria] estavam produzindo-o ativamente. Como destacaram os jordanianos, algumas dessas fábricas em Sweida ou em Daraa, não foram fechadas.”
Alguns analistas afirmam que no momento não há muito que o presidente interino sírio Al-Sharaa possa fazer: ele não pode se permitir antagonizar os líderes comunitários também implicados no comércio de captagon, pois também precisa estabilizar o país, após uma década de guerra civil e divisão nas comunidades.
“Por isso, não vimos tantas interceptações de laboratórios de captagon nessas áreas como em outras partes”, explica Caroline Rose. “O governo de transição conhece a capacidade desses clãs e as diversas redes: eles têm peso, respeito e credibilidade. E essa capacidade está sendo plenamente exibida agora, nos choques fronteiriços entre o Hezbollah e o Exército libanês, contra o Exército sírio.”
Desespero econômico é trunfo para narcotráfico
Rose não crê que Síria voltará a ser o “narco-Estado” que era sob a família Assad. Porém “é possível que sindicatos contrabandistas encrustados nas áreas fronteiriças sírias vão ameaçar o controle do governo interino sobre os postos de controle das fronteiras e a governança local”.
“Chefões das drogas já desempenham um papel importante nas turbulentas políticas do Líbano e da Síria, e no momento ambos estão atravessando uma fase transitória difícil, com seus respectivos novos governos”, frisa Hage Ali. Há necessidade extrema de melhorias econômicas estabilizadoras, para financiar e manter a segurança, e para que o desespero financeiro não precipite os habitantes no narcotráfico.
O especialista do Centro Carnegie cita como exemplo os salários dos soldados, que encolheram dramaticamente em termos reais devido à crise econômica nacional. Assim fica mais fácil cooptá-los para o comércio de drogas ilícitas.
“Se essas transições fracassarem, acho que ficará difícil combater o comércio de captagon. Se não houver comprometimento no sucesso das medidas, então a atual redução será apenas uma pequena pane na história da droga. Ela se recuperará em seguida e terá implicações críticas no prazo mais longo.”