06/07/2004 - 7:00
DINHEIRO ? A economia brasileira está mesmo crescendo?
EDUARDO GIANNETTI DA FONSECA ? Está. Os números são consistentes. Não há dúvida de que estamos vivendo uma retomada cíclica. Mas é importantíssimo diferenciar retomada cíclica de crescimento sustentável. São duas realidades muito distintas que se escondem por trás do aumento da produção. Se você olhar para trás, verá que o Brasil teve vários espasmos de crescimento. Depois de um período prolongado em que a economia operou abaixo do seu pleno potencial, ela tem condições de operar mais perto da sua plena capacidade, porque existe ociosidade do parque produtivo. O empresário pode aumentar a produção usando a capacidade instalada que ele já tem.
DINHEIRO ? Qual é o problema com isso? Isso não é bom?
GIANNETTI ? O problema é que o Brasil não tem conseguido passar de uma recuperação cíclica para um crescimento sustentável, que depende de poupança, investimento e acumulação de capital. O último episódio muito claro que o Brasil viveu desse tipo foi em 2000. Foi um ano espetacular. O Brasil cresceu 4,5%, a meta de inflação foi cumprida, o juro primário caiu para menos de 10% ao ano em termos reais e a dívida pública como percentual do PIB permaneceu estável. Foi um ano maravilhoso, que não teve seqüência. Em 2001 tivemos choques externos diversos e um megachoque doméstico, o apagão. Desde então a economia vem tentando penosamente se recuperar. Este ano, finalmente, voltamos à situação de 2000. Se nada mudar, teremos pela frente uns 18 meses de crescimento. Depois…
DINHEIRO ? O governo diz que a economia está pronta para crescer de forma sustentável…
GIANNETTI ? O mesmo foi dito em 2000, não só pelo governo mas por um monte de analistas independentes. Eles acreditaram que 2000 representava um novo padrão e não um ano atípico, como foi. A minha avaliação é que estamos prontos para uma recuperação cíclica, e isso é mérito do governo que criou condições para que isso ocorra. Estamos colhendo os frutos de uma política de curto prazo muito competente. Mas o governo falhou ao não preparar o terreno para que, depois da recuperação cíclica, o Brasil encontre o caminho do crescimento sustentável.
DINHEIRO ? Como se prepara esse terreno?
GIANNETTI ? A primeira coisa é perceber que o País está vivendo um enorme deslocamento de recursos do setor privado para o setor público, para financiar gastos correntes do setor público. A carga tributária bruta no Brasil é de 36% do PIB. De cada R$ 100 arrecadados, R$ 36 vão direto para o governo. Em cima disso tem o déficit nominal, de 3% a 4% do PIB, porque o Estado gasta mais ainda do que arrecada. No final, somando uma coisa e outra, temos que 40% da renda nacional é intermediada pelo Estado. Sem mudar isso, e sem investir em capital humano e no aperfeiçoamento do mercado, não há o menor risco de que o Brasil dê certo.
DINHEIRO ? Comparada à Inglaterra, onde o senhor viveu, essa carga tributária é escandalosa?
GIANNETTI ? Se tivéssemos um Estado de bem-estar como existe na Inglaterra não seria nada escandalosa. Se tivéssemos a saúde, educação, infra-estrutura, salário desemprego e aposentadorias da Inglaterra não seria escandalosa. Mas no Brasil acontece aquilo que o Delfim Netto colocou com muito bom humor: viramos Engana. O Estado taxa como a Inglaterra e tem programas sociais como Gana. Passamos de Belíndia, no regime militar, para Engana, na democracia.
DINHEIRO ? Por que o Estado que arrecada tanto investe tão pouco?
GIANNETTI ? A capacidade de investimento é muito reduzida. O Estado não consegue nem fazer a manutenção das estradas. O patrimônio está sendo destruído, à caminho do desmanche. O Brasil taxa muito acima do que qualquer país de renda média no mundo, faz um déficit nominal que tem de ser pago com novos empréstimos e, ainda por cima, não cumpre o mínimo que se espera de um Estado organizado na área de bens públicos. Isso mostra que há algo de profundamente errado nas nossas finanças públicas.
DINHEIRO ? Quando foi a última vez que o Estado brasileiro aportou recursos em vez de drená-los, como faz agora?
GIANNETTI ? Há dois períodos em que o Brasil cresceu muito, acima da média dos países em desenvolvimento: no governo Juscelino e no Milagre Econômico. No governo Juscelino (1956-1960) usamos a poupança forçada, a inflação. O Estado arrancou poupança da sociedade brasileira e financiou megainvestimentos como a nova Capital, rodovias e subsídios para o setor privado. É uma delícia enquanto dura, mas um dia chega a conta e ela chegou na forma de inflação, herdada por Jânio Quadros. Eugênio Gudin demonstra que o governo Juscelino triplicou a base monetária em quatro anos. Tenho impressão de que nada parecido aconteceu na história republicana do Brasil em termos de uso da inflação como mecanismo de arrancar poupança do setor privado.
DINHEIRO ? Mas pelo menos havia o investimento…
GIANNETTI ? Sim, mas o mecanismo era perverso. Com Juscelino foi plantada
a semente da inflação maluca que começaríamos a ter logo depois. Mas ele inves-
tiu, de fato, como se investiu no período do Milagre, especialmente no governo
Geisel (1974-1979). Para conseguir isso havia no interior do governo federal uma enorme repressão de gastos dos Estados e municípios. Até os secretários de Fa-
zenda estaduais eram nomeados por Brasília, para controlar os gastos. Nesse pe-
ríodo se gerou poupança do setor público para grandes projetos de investimento.
Um outro mecanismo usado sobretudo no governo Geisel foi a poupança externa,
que virou dívida. Passamos a receber muita poupança externa reciclada dos petrodólares. No governo Geisel o Estado brasileiro chegou a ser responsável por 60% da formação bruta de capital fixo do Brasil. Hoje esse percentual deve ser
de no máximo 20%, incluindo as estatais.
DINHEIRO ? Há uma corrente de economistas que sustenta que o problema central hoje não é o gasto
do Estado, mas o pagamento de juros.
GIANNETTI ? O pagamento de juros é parte importante do gasto público. Não se pode tratá-lo como se não
fosse parte da conta. Em condições normais e veloci-
dade de cruzeiro, o pagamento de juros equivale a 6%
do PIB. Então, daqueles 40% do PIB que o Estado pega, 6% são para servir os juros da dívida interna e externa do setor público. Outra conta altíssima é a do déficit previdenciário, que está entre 5,5% e 6% do PIB, e crescendo. Tirando esses dois itens, você ainda tem
28% do PIB livres para gastos públicos ? que é mais ou menos a carga tributária bruta de quando Fernando Henrique assumiu, em 1994.
DINHEIRO ? E para aonde vão os outros 28% do PIB que se paga em impostos?
GIANNETTI ? Aí entra a Constituição de 1988. Ela gerou um modelo de Estado
muito mal definido nas relações entre União, Estados e municípios. De 1988 para
cá a receita disponível de Estados e municípios aumentou em 6,4% do PIB. O problema é que no mesmo período a receita disponível da União também aumentou. Não houve deslocamento, houve aumento nos dois. Isso evidencia, de novo, que alguma coisa muito errada aconteceu nas finanças públicas. Foi um movimento
muito desastrado de descentralização. A sociedade brasileira está levando nas
costas dois Estados superpostos.
DINHEIRO ? Como a União aumentou receitas se a nova Constituição obriga a compartilhar todos os impostos?
GIANNETTI ? Essa é outra história interessante. A Constituição deixou uma brechinha chamada ?contribuições?. Contribuições com finalidade específica ficariam integralmente para a União. O que aconteceu de 1988 para cá, e que explica o aumento de arrecadação da União, é que foram criadas cinco contribuições, que
já representam 45% da arrecadação do governo federal. Elas passaram o Im-
posto de Renda e o IPI.
DINHEIRO ? Como a economia brasileira agüenta essas canetadas?
GIANNETTI ? Não agüenta. A desobediência tributária se espalhou, a informalidade cresceu, a capacidade de investimento do setor privado está muito reduzida. Nós todos estamos pagando. O sistema tributário brasileiro se tornou uma das coisas mais desastradas que se tem registro na era moderna. Outro dia eu presenciei uma reunião de uma multinacional em que a diretoria brasileira tentava explicar ao board americano a nova Cofins. Juro que se eu fosse dramaturgo escreveria uma peça sobre o absurdo da situação. Não dá para entender o casuísmo da nova Cofins. Chegamos na maluquice total, mas o governo ainda não se deu conta.
DINHEIRO ? O historiador Jorge Caldeira diz que esse tipo de coisa caracteriza um Estado pré-capitalista…
GIANNETTI ? Historicamente funciona no Brasil um pêndulo que oscila entre centralização e descentralização. No momento vivemos uma descentralização desastrada. Foi criado um sistema de desperdício em larga escala. Os recursos vão até Brasília, porque a centralização da arrecadação é grande, e depois são transferidos para Estados e municípios ? sendo que, desde 1988, nós criamos mais de 1.100 novos municípios, com câmara de vereadores, prefeituras e secretarias.
DINHEIRO ? O que o governo Lula poderia ter feito quanto a isso?
GIANNETTI ? Não acho que o governo pudesse ter feito algo profundo nessa área. Mas dado o que foi a reforma tributária era melhor não ter feito nada. Ela começou com um lindo discurso de melhorar a eficiência, melhorar a transparência e reduzir a carga sobre o setor privado e virou exatamente o contrário. Virou mais uma rodada de disputas entre níveis de governo para aumentar a sua fatia no bolo. Quando isso acontece, eles jogam a conta para a sociedade.
DINHEIRO ?Se o País não consegue reduzir sua dívida pública e chegou no limite da sua capacidade de arrecadação não seria hora de renegociar?
GIANNETTI ? Discordo radicalmente. Renegociação é calote. Só aumentaria o risco País sem resolver desvios, desperdícios e corrupção. Quanto custam as 5.561 câmaras de vereadores? É bem mais que o maior programa de distribuição de
renda do governo, o Bolsa Escola. O calote não resolve essas coisas. Se calote resolvesse o problema a América Latina seria um paraíso.