25/03/2025 - 15:12
Ao impor cortes de gastos mesmo sem crise financeira, governo enfraquece classe trabalhadora e alimenta ciclo de autoritarismo, afirma economista italiana Clara Mattei em entrevista à DW.A máxima de que um Estado precisa reduzir constantemente suas despesas, independente de estar em crise, ganhou força com a ascensão de governos de ultradireita pelo mundo, como o de Donald Trump, nos EUA, e de Javier Milei, na Argentina, segundo avaliação da economista italiana Clara Mattei.
A professora e diretora do Centro de Economia Heterodoxa (CHE) da Universidade de Tulsa, nos EUA, afirma que tais eleições intensificaram uma tendência global implacável de austeridade, sem justificativas macroeconômicas.
“É uma estratégia vencedora para aqueles que querem manter o status quo, porque a austeridade cria mais xenofobia, mais autoritarismo, e esse autoritarismo só produz mais austeridade”, diz.
Segundo ela, mesmo governos de centro-esquerda, como o de Luiz Inácio Lula da Silva, também acabam reféns de uma pressão do capital internacional por cortes de gastos. “Governantes centristas em todo o mundo estão pressionados para fazer políticas semelhantes, talvez menos aceleradas. Eu sei que o governo Lula, por exemplo, está tendo que lidar com a austeridade por causa da pressão da elite econômica e dos investidores do mercado”, afirma.
DW: O que é a austeridade autoritária e como isso vem se tornando uma tendência global, mesmo sem novas crises financeiras?
Clara Mattei: Nosso sistema econômico está mostrando a sua cruzada de repressão econômica sobre a maioria, dado que a austeridade está sendo liderada sem o motivo de uma crise financeira. E isso é muito claro.
Todos os governos de direita, como Trump, nos EUA, ou Milei, na Argentina, estão pressionando pela austeridade. Sabemos que governantes centristas em todo o mundo estão pressionados para fazer políticas semelhantes, talvez menos aceleradas. Eu sei que o governo Lula, por exemplo, está tendo que lidar com a austeridade por causa da pressão da elite econômica e dos investidores do mercado.
Acho que é um momento histórico muito interessante, porque, de certa forma, as desculpas caíram, e agora o que você vê é uma guerra de classes muito clara. No fim das contas, a austeridade serve para preservar o equilíbrio de poder entre a maioria das pessoas trabalhadoras e a elite. Essa elite está capturando quase todos os recursos que são produzidos pela sociedade e mantendo o resto das pessoas em uma forma muito vulnerável e precária de vida.
Essa simbiose de austeridade e autoritarismo se forma em si mesma – no sentido de que, quanto mais austeridade os governos implementam, mais as pessoas acreditam na narrativa de que é o mais fraco que é responsável pelo quadro atual. É uma estratégia vencedora para muitos daqueles que querem manter o status quo, porque a austeridade cria mais xenofobia, mais autoritarismo, e esse autoritarismo só produz mais austeridade.
O retorno de Trump à Casa Branca pode trazer novas ondas de cortes orçamentários e políticas pró-mercado. Na sua visão, quais seriam as principais características da “austeridade autoritária” nesse novo mandato?
Eu acho que alguém como Elon Musk sabe que os trabalhadores podem se organizar e contestar o capitalismo e a relação social pela qual eles são explorados.
É interessante notar como essa administração [o governo Trump] ataca diretamente a área social. Trump quer desmantelar completamente a pequena infraestrutura social que restou após [Joe] Biden, como o Medicaid e o Head Start [dois programas voltados a pessoas de baixa renda, sendo o primeiro de assistência à saúde e o segundo focado na primeira infância].
Acho que é algo parecido com o que vimos na administração [de Jair] Bolsonaro no Brasil: um ataque à infraestrutura para ver o quão rápido ela pode se desmantelar, com a ideia de que, uma vez que ela se desmantela, é muito difícil reconstruir.
Mas isso não significa que o Estado não estará gastando; o Estado estará gastando para apoiar, subsidiar e incentivar a elite.
O que geralmente acontece é que taxam mais o trabalho, a classe trabalhadora, enquanto reduzem taxas sobre o capital, dividendos, propriedade, e lucros corporativos.
Além disso, a austeridade constante espreme os trabalhadores, porque, com uma taxação regressiva, se eles têm que comprar o que antes tinham como direito, isso significa que eles são mais dependentes do mercado e estão também mais dispostos a aceitar qualquer condição de trabalho.
Como essa nova onda de austeridade pode impactar a economia europeia, principalmente em países como a Alemanha, que flexibilizou o limite de endividamento introduzido pelo governo de Angela Merkel em 2009?
Sabemos que os níveis de pobreza estão subindo em toda a Europa. A desigualdade é obscena agora. Na Itália, o número de bilionários no país continua aumentando e, ao mesmo tempo, a pobreza absoluta continua subindo também.
Essa desigualdade não produz futuro para os cidadãos. Ela produz um grande banquete para aqueles que já estão ganhando. A Itália é privatizada e continua a privatizar o máximo possível. Meloni continua cortando os benefícios dos cidadãos, jogando milhares de famílias em pior condição, enquanto ela está dizendo que precisamos nos rearmar.
E isso é algo que nós estamos ouvindo na Alemanha também. A retórica é que nós estamos rearmando, precisamos aumentar nosso setor de defesa, enquanto o custo dele é desmantelar o setor social.
O setor de defesa é o melhor setor para o governo investir, no sentido de que ele não desafia o equilíbrio de classes.
Não é sobre empoderar as pessoas diretamente através de recursos sociais, através do trabalho público, através de uma sensação de participar da economia. Na verdade, é o melhor jeito de estimular os investidores enquanto preservam a total despolitização e a desdemocratização da economia.
No Brasil, a austeridade é frequentemente justificada como necessária ao equilíbrio das contas públicas, mas também resulta em cortes em áreas sociais e aumento da desigualdade. Você vê paralelos entre a “austeridade autoritária” e as políticas econômicas adotadas no Brasil nos últimos anos?
O Brasil tem recursos abundantes. E há formas de o país ter uma produção muito mais sustentável, ecológica e democrática.
Isso deveria ser algo que poderia ser expandido com o apoio do Estado, se o Estado parar de focar em satisfazer os investidores internacionais – que, de qualquer forma, nunca estarão satisfeitos. Porque, de novo, se você fizer austeridade, você vai causar uma recessão que trará sua morte econômica no longo prazo.
Acho que o Brasil é um país típico que, se tivesse coragem política para dizer que persegue uma agenda original, ecológica e democrática, poderia realmente fazer isso. Mas é preciso muita coragem, apoio popular e imaginação política.
Será que o Lula vai conseguir fazer isso? Não sei, eu não acho. Ele está muito dentro desse sistema. E isso só vai acontecer se houver pressão de baixo.
O Estado precisa apoiar atividades que são relacionadas à produção para, finalmente, conseguir uma independência do mercado. Isso não vai acontecer na Europa, acho que a Europa está morta politicamente. Isso precisa acontecer no Sul Global, começando pelo Brasil.