01/10/2025 - 14:20
Em parceria com Vinicius de Moraes, violonista lançou disco que acabaria se tornando marco da MPB, mas também da apropriação da sonoridade afrobrasileiraO ano de 1962 foi aquilo que os adeptos dos clichês poderiam definir como divisor de águas na vida do violonista e compositor brasileiro Baden Powell (1937-2000). Naquele ano, o músico conheceu o poeta e compositor Vinicius de Moraes (1913-1980), viajou à Europa pela primeira vez e resolveu, carioca e descendente de africanos, empreender um curioso mergulho no universo da capoeira e dos terreiros de candomblé da Bahia.
A mistura desses três elementos faria nascer, em 1966, o disco Os Afro-Sambas. E aí parece que o clichê do divisor de águas vem mesmo a calhar: críticos da época chegaram a chamar o projeto de “uma bacia hidrográfica” em forma de MPB, por conseguir misturar de forma líquida, com requintes de homogeneidade, variados elementos da sonoridade afro com a bossa nova que se fazia sobretudo no Rio de Janeiro e reinava como o suprassumo do status quo cultural brasileiro.
Baden se impressionou muito com o que viu e ouviu na Bahia. Achou que o berimbau era instrumento que muito bem se encaixaria na música contemporânea que ele buscava e percebeu um repertório de sons, de sintaxe e de semântica no mundo dos terreiros afrobrasileiros que merecia e precisava ser disseminado em forma de MPB. Tal e qual os antropofagistas do modernismo, ele usaria o conhecimento clássico de música herdado da Europa para dar vazão às riquíssimas musicalidades africanas.
Baden Powell passou a usar o violão para mimetizar o som do berimbau, por exemplo.
Vinicius de Moraes foi o parceiro perfeito para a empreitada. O poeta, que se autodenominava o “branco mais preto do Brasil”, era um apaixonado pela cultura afrobrasileira. O compositor Carlos Coqueijo (1924-1988) havia lhe dado de presente um disco com gravações ao vivo de canções entoadas em terreiros de umbanda e candomblé na Bahia e essa trilha se tornou um constante estudo de Vinicius e Baden Powell em suas noitadas regadas a uísque.
Tendência
Naquele período, não era exceção, no meio artístico, esse olhar atento para a cultura afro. “Era já grande no país, principalmente na música, a conscientização da importância da influência e da contribuição da cultura negra em nossa formação”, conta o pianista Amilton Godoy, um dos fundadores do conjunto Zimbo Trio. Um ano antes dos afrossambas de Baden e Vinicius saírem em disco, o Zimbo lançou, com o vocal de Elis Regina (1945-1982), o LP O Fino do Fino. Ali já havia referências ao que depois se chamaria de afrossamba, como as faixas Zambi e Aruanda.
A própria dupla Baden-Vinicius antes tinha fincado o pé nesse conceito. Conforme lembra o músico Alberto Ikeda, consultor da cátedra Kaapora da Diversidade Cultural e Étnica na Sociedade Brasileira na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), o samba Berimbau, de 1963, é um exemplo da “mesma preocupação temático-estética”. “Além da letra em torno do tema amoroso e o jogo da capoeira, apresenta um berimbau, instrumento, com destaque no arranjo e o violão fazendo também a sua imitação, lembrando diretamente o jogo e os seus toques rítmicos”, analisa.
Godoy recorda que essa busca era motivada pela “influência que considerávamos das maiores, dentro da música brasileira, da cultura africana, por meio não só do suingue, do balanço e também da riqueza rítmica, como também das escalas [musicais]”.
Ele se emociona ao lembrar de Baden Powell, de quem era amigo — o músico morreu há 25 anos, em setembro de 2000. “Em sua música era muito presente a influência negra. Sempre foi visível, na forma como ele tocava”. O pianista não poupa elogios ao mestre do violão: “o homem era um Deus para todos nós”.
Todo samba seria afro
O disco Os Afro-Sambas foi lançado em 1966. O trabalho foi regido pelo maestro César Guerra-Peixe (1914-1993), teve nos vocais, além de Vinicius, o Quarteto em Cy e a cantora Dulce Nunes (1929-2020). As oito faixas têm a autoria assinada pela dupla Baden-Vinicius.
“[Nos afrossambas,] a música e a religiosidade de matriz africana injetam no samba e na bossa nova uma profundidade lírica e rítmica inédita, aprimorando a música popular brasileira como um todo”, define o sociólogo Rogério Baptistini, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
No verbete dedicado ao disco, a Enciclopédia Itaú Cultural observa que há uma contradição na terminologia adotada, “pois o samba é um gênero de raiz africana”. “Apesar disso, serve para identificar o conjunto de composições que Baden e Vinicius criam com a fusão de cantos africanos e gregorianos com os elementos rítmicos do candomblé”, pontua o artigo.
Ikeda tem opinião semelhante. “É importante lembrar que o termo afrossamba é, sim, conceitualmente uma redundância uma vez que o samba tem sua gênese nas comunidades afrodescendentes da Bahia, do Rio de Janeiro e outras localidades, sendo já originalmente afro, portanto”, frisa ele.
Entre a apropriação e a valorização
Mas de que forma isso pode ser visto como uma apropriação cultural, aos olhos de hoje?
“Depende do olhar e da postura. Quando há respeito, reconhecimento e diálogo, o gesto pode ser de valorização e até de proteção da memória. Quando há apagamento, exotificação ou lucro sem reconhecimento, aí sim se torna ofensivo”, explica o influenciador digital Jonathan Pires, idealizador da Marcha para Exu. “O povo de santo, muitas vezes, enxergou nos afrossambas uma porta de entrada para que a sociedade olhasse com mais seriedade para o candomblé, ainda que isso não tenha eliminado o preconceito religioso. O que fere não é a circulação da cultura. É quando se tenta apagar quem a originou.”
Para especialistas afrobrasileiros, o que Baden Powell fez ficou no limite entre a valorização positiva e o uso abusivo de uma cultura que não era a do meio em que ele transitava.
Autor do livro Apropriação Cultural, o sociólogo, antropólogo e babalorixá Rodney William Eugênio analisa essa história considerando dois fatores. O primeiro aspecto é que os afrossambas “contribuíram para que a cultura negra, sobretudo a cultura negra de terreiro de candomblé e dos elementos da religiosidade afrobrasileira, fosse conhecida nacionalmente”.
“Eles levaram para o Brasil e para o mundo os nomes dos orixás, alguns aspectos do culto, palavras que eram usadas dentro dos terreiros, palavras das línguas iorubá e banto. Nesse sentido, é muito positivo”, comenta. O professor Ikeda lembra que tanto Baden quanto Vinicius, pela projeção que tinham, contribuíram para difundir maciçamente esse universo antes restrito a nichos da sociedade.
Para Pires, os méritos de Baden Powell estão não apenas em se inspirar “nas matrizes afro-brasileiras” e dar “visibilidade para cantos e ritmos do candomblé”. O feito se tornou importante porque a sua obra colocou “esses elementos dentro da chamada alta cultura”. “Isso tem um peso simbólico enorme. Ele abriu portas para que as matrizes africanas fossem reconhecidas como sofisticadas, complexas e universais”, salienta.
Por outro lado, o antropólogo Eugênio ressalta que a bossa nova em si foi “um processo de apropriação”, já que foi um movimento da elite branca que recriou o samba, antes “feito pela gente do morro”. Ele lembra, por exemplo, da expressão “samba limpo” para se referir à bossa nova.
“A percepção sobre apropriação é delicada. Depende de quem percebe e do contexto em que está inserido. Essa situação conduz a uma ambiguidade básica: é possível observar a obra de Baden Powell e Vinicius de Moraes como um reconhecimento e uma homenagem à riqueza da cultura afro-brasileira”, analisa o sociólogo Baptistini. “Mas, igualmente, ela pode ser entendida como invasiva, feita por quem não pertence à comunidade original que empresta sentido àquilo que exprime.”
No fim da vida, Baden Powell se tornou evangélico e passou a evitar termos relacionados à religiosidades africanas. Em entrevista concedida à Folha de S. Paulo em 1999, o músico explicou que “afro é todo o Brasil”, “está dentro da gente”. Sobre os afrossambas, ele contou que naquela época estudava cantos gregorianos e “fazia composições em cima deles”. “Os cantos africanos são idênticos aos gregorianos, é impressionante”, afirmou. “Os caras pensam que fizemos música para macumba, candomblé. Não tem nada disso, não. É coisa de cultura.”
Outros marginalizados
Para os especialistas, o que fica de lição dos afrossambas é que há espaço para, a partir de referências de grupos ainda hoje marginalizados, ampliar de modo respeitoso, inclusivo e diversos, o repertório cultural brasileiro.
“A história dos afrossambas não deve ser entendida apenas como um gesto de reconhecimento da cultura afro-brasileira, mas também como um convite a pensar o futuro do Brasil”, diz Baptistini. “Se a valorização dessa herança foi capaz de lançar luz sobre grupos e tradições até então marginalizados, o passo seguinte é ampliar o olhar para outras culturas silenciadas, de modo que a canção popular continue a cumprir sua função de espelho e de abertura para o diverso, de diálogo entre o particular e o universal.”
Ele cita especificamente os povos indígenas, com “suas cosmologias, suas formas de expressão musical, seus mitos de origem e sua arte material”.
“Lembrar os afrossambas é também lembrar que ainda temos dívidas culturais com outros povos. Os indígenas, por exemplo, seguem invisibilizados em muitos aspectos”, comenta Pires. “Se o Brasil conseguiu se encantar com a beleza de uma cantiga de candomblé dentro de um samba, precisa também se abrir para escutar as sonoridades e os saberes indígenas com o mesmo respeito. O reconhecimento cultural não pode ser seletivo: ou valorizamos a pluralidade inteira, ou seguimos reproduzindo apagamentos.”