24/09/2003 - 7:00
Uma tremenda confusão foi posta a nu na Itália. Deve-se lavar com água ou com solventes de última geração o Davi de Michelangelo, a lendária estátua de 4 metros de altura, obra-prima da humanidade? Na semana passada, um ano depois do anúncio da lavagem, e de muito bate-boca, os trabalhos foram iniciados. A solução, definida pela historiadora Cinzia Parnigoni: limpeza com água bidestilada e compressas de argila. O banho na estátua de mãos desproporcionais, abrigada na Galleria dell?Academia de Florença desde 1873, deve terminar em 2004, a tempo do aniversário de 500 anos. Custará 350 mil euros. ?O Davi não é um doce de chocolate, que se dissolverá no contato com o líquido?, diz Antonio Paolucci, ministro italiano da Cultura. ?Estamos usando uma substância inofensiva, como as que são vendidas para a limpeza de pele ao acordar.?
A preocupação com o trabalho de Michelangelo é procedente. Em cinco séculos, o Davi já sofreu inúmeros traumas. Um deles aconteceu exatamente em sua última lavagem, em 1843, quando o restaurador Aristodemo Costoli a banhou em ácido hidroclórico. Resultado: o gigante pelado perdeu sua coloração amarelada e ficou exageradamente branco. Os descuidos já remontavam a tempos mais antigos. Em sua chegada à cidade, em 1504, foi recebido a pedradas. Em 1512, um raio atingiu o braço esquerdo. Houve ainda feridas durante distúrbios políticos em 1527. Tanta perfeição em mármore de Carrara atiçou os invejosos. Um artista de segunda, Piero Cannata, aplicou-lhe marteladas em um dos dedões em 1991.
Capela Sixtina. Para além do amor e do ódio que a figura desperta, a disputa sobre o método de limpeza é a ponta visível de um debate mundial: há os que defendem a conservação das peças como se fossem novas e outros que consideram a ação do tempo, e o envelhecimento, fator crucial nas pinturas e esculturas antigas. O próprio trabalho de Michelangelo na Capela Sixtina do Vaticano já viveu esse mesmo dilema nos anos 80. Decidiu-se restaurar o teto porque as cores estavam esmaecidas. Uma raspagem prévia mostrou que o desenho original tinha tonalidades mais fortes. Os restauradores decidiram tocar as obras, abrindo ao mundo matizes inéditos. Os puristas chiaram ? como reclamam agora, como Golias ofendidos, diante do Davi de pedra.