18/06/2025 - 17:37
Volume de anúncios de bets no gramado durante o campeonato supera (em muito) o de outros torneios pelo mundo – com grande impacto sobre o bolso e a saúde mental de brasileiros, revela análise exclusiva.Para Karen, tudo começou com um anúncio e um influenciador digital. Em seguida, ela fez uma aposta de R$ 30. Depois, vieram a vergonha, dívidas crescentes, o uso do cartão de crédito da mãe e uma batalha contra o vício que, embora tenha diminuído, ainda existe.
“Se eu estava em uma festa, estava lá jogando. Se ia a algum restaurante ou bar, o celular estava na mão. Até para tomar banho, era com o celular na mão. Embaixo do chuveiro, com o braço esticado”, disse à DW a jovem de 29 anos, natural de Minas Gerais.
Ela não sabe ao certo quanto perdeu, mas sabe que foram vários milhares de reais a mais do que ela pode pagar. “As empresas de cartão de crédito ligam todos os dias”, disse Karen, que prefere não divulgar seu sobrenome, pois a maior parte de seus familiares não sabe do seu problema.
Embora o vício em apostas seja uma questão cada vez mais grave em todo o mundo, dos EUA e Alemanha à China, histórias como a de Karen refletem o aumento do problema no Brasil. O país legalizou as bets online no final de 2018, mas não fez nenhum esforço para legislar contra seus malefícios ou sua publicidade até janeiro de 2025. Pesquisadores e profissionais de saúde mental identificaram um aumento nos casos de vício em bets, especialmente entre brasileiros de baixa renda.
Um indicador de como as apostas se disseminaram pelo país é que os beneficiários do Bolsa Família gastaram aproximadamente R$ 3 bilhões em jogos de azar online no mês de agosto de 2024, segundo um relatório do Banco Central do Brasil. O valor equivale a 21% de todos os benefícios pagos pelo programa no mesmo período.
Um estudo feito pela Universidade Federal de São Paulo em 2023 descobriu que 6% dos brasileiros afirmavam fazer apostas esportivas online (o equivalente a cerca de 9 milhões de pessoas), e que 67% delas eram “apostadores de risco” – não necessariamente pessoas viciadas, mas que apresentam comportamentos imprudentes, como apostar mais do que pode perder.
O jogo também se infiltrou no esporte favorito e obsessão nacional do país, o futebol. O mesmo estudo mostrou que as bets online, impulsionadas pelo futebol, são a segunda forma mais popular de apostas no Brasil, atrás apenas das loterias estatais.
Uma análise exclusiva da equipe de dados da DW mostra ainda que seis em cada dez painéis publicitários ao redor do campo durante o Campeonato Brasileiro de 2024 exibiam anúncios de apostas esportivas ou outros tipos de jogos de azar – número que subiu para sete em cada dez na rodada final do torneio.
Anúncios de bets inundam o futebol brasileiro
Há cinco anos, uma ampla gama de setores econômicos aparecia nos painéis publicitários do Brasileirão: bancos, postos de gasolina, companhias aéreas, empresas farmacêuticas, lojas de varejo e redes de comunicação eram quase sempre visíveis ao redor do campo.
Agora, tudo gira em torno da Superbet, Betano, PixBet ou BetNacional. Comparado a 2019, primeira temporada após a legalização das apostas, a participação de empresas de jogos de azar em anúncios ao redor do campo dobrou.
Esses números são resultado de uma análise realizada pela DW que utilizou um modelo de inteligência artificial para detectar, classificar e contar os painéis publicitários exibidos em partidas do Brasileirão de 2019 a 2024.
A investigação foi realizada utilizando vídeos com os melhores momentos de jogos disponíveis no YouTube. Mais detalhes sobre a metodologia estão disponíveis neste repositório público.
Os dados também revelam que cerca de 70% dos anúncios exibidos nas placas de propaganda ao redor do campo na rodada final do Campeonato Brasileiro de 2024 eram de empresas de bets. São 16 pontos percentuais a mais que o segundo colocado, o torneio da Colômbia, e mais que o dobro das principais ligas europeias, como a Série A da Itália e a Premier League, na Inglaterra.
Clubes ficaram dependentes desse patrocínio
Alguns países com setores de apostas esportivas estabelecidos há mais tempo começaram a implementar restrições à publicidade. Em 2021, a Espanha, por exemplo, proibiu essas empresas de exibir publicidade durante transmissões de eventos esportivos no horário nobre e impediu os clubes de assinarem contratos de patrocínio com elas.
Os clubes da primeira divisão inglesa não poderão mais exibir logotipos de bets na frente de suas camisas a partir da temporada 2026/27, embora os anúncios ao redor do campo continuem.
No Brasil, todos os 20 clubes da primeira divisão exibem atualmente pelo menos um patrocinador de jogos de azar em seus uniformes, e 90% deles os exibem na frente e no centro, de acordo com o portal Globo Esporte.
A extensão da dependência dos clubes brasileiros da indústria de jogos de azar ficou clara quando um projeto de lei foi proposto para reduzir drasticamente essa publicidade, em maio de 2025.
Uma declaração conjunta assinada por mais de 50 clubes, incluindo os que atualmente disputam a Copa do Mundo de Clubes da Fifa (Palmeiras, Flamengo, Fluminense e Botafogo), afirmou que o projeto de lei resultaria em uma perda combinada de R$ 1,6 bilhão por ano. “Tal limitação, caso não ajustada, terá como consequência o colapso financeiro de todo o ecossistema do esporte e, em especial, do futebol brasileiro”, alertou a nota, ao mesmo tempo em que reconhecia a necessidade de alguma regulamentação.
“É como se algo estivesse cutucando sua cabeça”
Os impactos da publicidade tanto sobre apostadores como não apostadores são claros para o professor de psicologia Jamie Torrance, pesquisador na Universidade de Swansea, no Reino Unido. Ele disse à DW que o fato de as empresas de apostas gastarem bilhões em publicidade em todo o mundo, tanto no esporte como em outras áreas, prova o quanto elas acreditam na eficácia dessa estratégia.
“Incorporar essas marcas a um jogo com o qual as pessoas se importam, no qual elas investem emocionalmente, é um paradigma clássico de condicionamento. As pessoas têm esses laços emocionais com o esporte, e as empresas de apostas também querem que elas tenham esses laços emocionais com suas marcas de apostas”, diz. O mesmo vale para influenciadores e celebridades – uma tática de marketing que não se limita ao âmbito esportivo.
Karen disse que isso certamente funcionou com ela. Suas apostas se concentravam no Jogo do Tigrinho, uma máquina caça-níquel virtual promovida por personalidades de redes sociais que ela seguia. Embora ela não o tenha descoberto por meio do futebol, as principais empresas que aparecem em anúncios e uniformes também oferecem o mesmo jogo.
“[Um influenciador] postou um mero jogo , e entrei por curiosidade. O primeiro jogo foi 30 reais, um depósito em vão. Aí pensei: ‘Não, isso aqui é tolice, é burrada'”, disse. “Alguns meses se passaram, e uma amiga veio me falar: ‘Ah, mas eu tô jogando e tô tendo um retorno muito bom’. Aí eu fui pesquisar sobre e foi aquele inferno no Instagram, né? Sempre vendo postagens, sempre vendo as pessoas divulgando. Aí ali começou…”
Depois que o vício se instalou, ela não conseguia escapar dos estímulos para jogar. “Quando você vê um vídeo ou a pessoa postando algum ganho, aquilo martela na cabeça: ‘E se eu colocar um valor? E se eu tentar mais uma vez?'”
Anos sem supervisão levaram a uma crise de saúde pública
Karen diz que começou a perceber a dimensão do seu problema com o jogo quando encontrou um grupo de apoio online liderado pelo psicólogo Rafael Ávila e sua Associação de Proteção e Apoio ao Jogador.
Ávila oferece um serviço gratuito para centenas de jogadores viciados. Ele disse à DW que, fora das grandes cidades, quase não há ajuda para pessoas na situação de Karen. Ele acredita que a falta de uma regulação séria quando o jogo foi legalizado provocou uma crise. “O governo não está investindo o montante necessário para resolver o problema. Agora eles estão tentando resolver, mas isso deveria ter acontecido há seis anos”, disse.
A situação só mudou no início de 2025, quando uma nova norma entrou em vigor. No entanto, a regulamentação atual se concentra principalmente na tributação e no registro adequado das empresas de jogos de azar junto às autoridades brasileiras. Os anúncios permaneceram praticamente inalterados, exceto pelo fato de que as empresas agora precisam exibir avisos sobre o jogo responsável, assim como fazem as bebidas alcoólicas, e não podem promover o jogo como uma fonte de renda.
Congresso debate regulamentação mais rígida
O Instituto Brasileiro de Jogo Responsável, que representa 75% das empresas de apostas no Brasil, disse à DW que as mudanças recentes já estão surtindo efeito. “A regulamentação, em vigor desde janeiro de 2025, marcou um novo começo para o setor, com regras claras que oferecem mecanismos adequados para a promoção do jogo responsável”, afirmou em nota.
O Congresso brasileiro, no entanto, está discutindo uma regulamentação mais rígida sobre anúncios, contestada pelos clubes, para proibir anúncios de bets durante as transmissões dos jogos. A participação de pessoas famosas, como atletas profissionais e artistas, também seria proibida.
O projeto de lei já foi aprovado pelo Senado. Para entrar em vigor, precisa ser ainda aprovado pela Câmara dos Deputados e sancionado pelo presidente. Seu conteúdo ainda pode sofrer alterações durante a tramitação, e o texto aprovado no Senado já era uma versão diluída da proposta original, que previa a proibição total de qualquer tipo de propaganda de jogos de azar.
Para Karen e inúmeras outras pessoas como ela, isso será muito pouco e chegará muito tarde. Por meio de seu trabalho com Ávila e outros viciados, e de sua estratégia de não manter dinheiro disponível online, ela conseguiu ficar sem apostar por cerca de um mês. Mas ela já havia chegado a esse ponto antes e teve uma recaída. Algo que começou como uma diversão sem grande importância tomou conta de sua vida.