25/07/2022 - 16:32
Segundo cientista político Christian Lynch, ao desacreditar sistema eleitoral e insinuar ameaça de golpe de Estado, o presidente quer uma negociação para salvar os filhos, os militares e a si mesmo após deixar o cargo.O lançamento da candidatura à reeleição de Jair Bolsonaro (PL), no domingo (25/07), no Rio de Janeiro, foi marcado pela repetição das falas golpistas do presidente da República. No evento, o chefe do Executivo bradou contra as urnas eletrônicas, contra o Supremo Tribunal Federal e conclamou os seguidores a irem às ruas no Sete de Setembro.
Em entrevista à DW Brasil, o cientista político Christian Lynch, professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ), diz que, para além das rupturas diárias causadas pelo bolsonarismo, a tese de um golpe aos moldes clássicos não passa de bravata.
Para Lynch, Bolsonaro quer usar de uma ‘arruaça', inspirada na invasão do Capitólio por apoiadores de Donald Trump, para aumentar a barganha numa negociação com o Congresso que vá livrar tanto ele como sua família e seus protegidos políticos, e colocar o Judiciário contra a parede.
Segundo o professor, o mediador é exatamente opresidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), um dos presentes no lançamento da candidatura de Bolsonaro.
“Ele media um bom arranjo, num grande acordão, um autoindulto para todos os generais golpistas, para o presidente e sua família. E o acordo é que o Supremo não mexa nisso, e o Congresso deixe isso passar.”
DW Brasil: No lançamento da candidatura, Jair Bolsonaro voltou a colocar em dúvida as urnas eletrônicas e atacar o STF, e afirmou que “todo mundo” vai para as ruas no dia 7 de setembro, num sentido de pressão às instituições. Esse golpismo explícito vem sendo reiterado todo dia, inclusive nesses eventos oficiais. Ele vai dar o golpe? Está na hora de pararmos de fingir que não vai acontecer nada?
Christian Lynch: Golpe significa três coisas diferentes no mundo do Bolsonaro ou no mundo de quem fala desse assunto em torno dele. Um é o golpe nosso de cada dia, dos decretos inconstitucionais, liberações de armas, dos pedidos de impeachment que não são processados, do procurador da República que não denuncia o presidente, nomeação de gente desqualificada para atuar, assédios… Esse é o golpe nosso de cada dia.
A palavra golpe tem outros dois sentidos que são empregados no cotidiano. Um deles é o golpe clássico, o militar. É o golpe que tem as Forças Armadas, é tanque na rua, é fechar Supremo Tribunal Federal, fechar Congresso. Esse golpe é inviável, porque não existe nenhum estímulo real para isso por parte das Forças Armadas.
Acho que é o contrário, é uma hora ótima pra Forças Armadas terem um retorno da esquerda, porque elas estão tão “prestigiadas” e todo mundo precisando do apoio delas por causa do fantasma do golpe e do retorno do conservadorismo, que tudo que elas conseguiram, todos os privilégios no governo Bolsonaro, isso não vai ser desfeito num governo de esquerda.
Para as Forças Armadas, estrategicamente, seria ótimo o Lula assumir, porque o presidente vai assumir mais fraco do que estava em 2002, não vai ter ampla maioria no Congresso, tem esses fascistas, digo, os bolsonaristas selvagens, na oposição. Lula não vai poder ficar cutucando as Forças Armadas. É uma hora ótima para elas consolidarem os privilégios.
E, além disso, os militares que estão com o Bolsonaro mostrando os dentes não são mais militares a rigor. São ex-generais, aposentados, que viraram políticos. O papel deles é encenar a adesão do grosso das Forças Armadas ao Bolsonaro. Os aposentados não têm tropa nenhuma, não têm razão para embarcar nessa aventura e colocar em risco tudo que ganharam.
E qual é a terceira forma de golpe?
É a insurreição. Esse é o nome técnico, mas o nome que merece é “arruaça”. Existe uma conexão um pouco com o segundo sentido, mas há uma diferença. Para isso, precisamos entender qual é a teoria da democracia e da Constituição do bolsonarismo, que eu chamo de populismo reacionário. Nele, o povo é unitário e se comunica diretamente com o caudilho, o populista. O caudilho está acima de todos os Poderes, num esquema meio bonapartista.
E, nessa fantasia, o povo e as Forças Armadas são a mesma coisa – as Forças Armadas estão do lado do povo e, logo, do lado do caudilho. E o caudilho é o poder supremo, logo, está acima dos demais Poderes. E como o povo está ao lado do caudilho, o caudilho não perde a eleição, só se ela for fraudada. E o caudilho populista está contra quem? Está contra as elites e sistema, mas a eleição é feita pelo sistema, então, se ele for derrotado, será por uma artimanha do sistema.
E aí vem o terceiro sentido do golpe – o golpe como insurreição do povo revoltado pela fraude, com a violação da sua vontade soberana de reconduzir o caudilho, o “Führer”, como você quiser. É tudo copiado de Carl Schmitt, que é um jurista nazista, que diz que, depois da ascensão do nazismo, o Führer é o poder supremo.
Temos que entender como eles interpretam o que seria uma verdadeira democracia para eles, que na verdade é ditadura; o que eles entendem por constitucionalismo, que é o que o caudilho quer que seja. Nesse terceiro sentido, golpe é a insurreição, é a cópia do [Donald] Trump, que é a arruaça – vendida como apelo do povo aos céus contra a perspectiva da tirania.
Para eles, o que nós entendemos por democracia é ditadura, e o que entendemos por ditadura é democracia.
Mas, voltando à sua pergunta. Haverá golpe? No primeiro sentido, está havendo golpe desde o primeiro dia do mandato. No segundo sentido, golpe das Forças Armadas à maneira de 1964, que na verdade é igual a 1937, ou seja, um autogolpe, não, pelas razões já aduzidas.
No terceiro sentido é provável. Para quê? Deixando de lado as teorias fascistoides do bolsonarismo, é para você fazer a mesma coisa do Trump: deslegitimar a eleição para 20%, 30% do país, e ele poderem negociar a saída do poder. E já tem uns candidatos a negociadores.
Bom, um dos que têm se apresentado como tal é justamente o Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, que estava no lançamento da candidatura do Bolsonaro. Outros membros clássicos do Centrão, como o Valdemar da Costa Neto, também estavam lá. E ouviram todas essas frases golpistas. Silenciosamente, eles estão apoiando o golpe, no sentido da arruaça?
Não, o Centrão vai fazer o seguinte… É claro que tudo depende do volume da arruaça. Quanto maior, mais poder de barganha Bolsonaro vai ter, e mais cacife vão ter os mediadores. Quem são os mediadores? Quando a gente olha para a cena política, vemos vários sujeitos que gostam de mediar: o ex-presidente Michel Temer; o ministro do Supremo, Gilmar Mendes; e me parece que o Lira está se colocando numa posição particularmente interessante, interessada, em ser o grande árbitro, o grande mediador.
Por quê? Porque ele mantém a confiança do presidente da República. Então ele vai negociar, mediar. Ele media um bom arranjo, num grande acordão, num indulto, um autoindulto para todos, para todos os generais golpistas. Um indulto para o presidente e sua família. E o acordo é que o Supremo não mexa nisso, e o Congresso deixe isso passar.
Aí, é obvio que influi em outras coisas, com as questões de improbidade do Lira e do Centrão, sempre colocando o Judiciário na parede. Se o Lira consegue fazer isso, ele supostamente tem um maior cacife que já tem, garante que o Lula vai ter que fazer o acordo de aceitá-lo como candidato à reeleição à presidência da Câmara. Aí o Lula assume mais fraco do que nas outras situações.
Essa vai ser a serventia da arruaça.
Além do Lira, estavam lá outras figuras, como o Marco Feliciano, o governador do Rio de Janeiro Cláudio Castro…
Quem apoia Bolsonaro? Você tem três tipos de pessoas. Acho que metade são fascistas, fascistoides, que querem passar por cima, derrubar tudo. É o pessoal que vaiou o Lira no domingo, por exemplo. Essas pessoas querem a ditadura, fechar as instituições.
O outro quarto é de reacionários, que às vezes podem se misturar com os fascistas ou não. Os reacionários são os pastores fascistoides, como o Marco Feliciano, o Silas Malafaia.
E você tem a outra parte, que é de conservadores que não são fascistoides, são neoliberais, como o Adolfo Sachsida, o Paulo Guedes, alguns generais, que se acham conservadores evolucionistas, mas não são golpistas. São generais que se aposentaram.
O Centrão está na ala dos conservadores. Mas não está na área dos fascistoides. Pelo menos a maioria do Centrão, não. Tem um pessoal que está lá que é bolsonarista raiz, mas não são eles que mandam no Centrão. E tem outra coisa: nem todo o Centrão está com o Bolsonaro. MDB, PSD, União Brasil, é Centrão, mas não está fechado com o Bolsonaro.
O que a confirmação do general Braga Netto como vice do Bolsonaro representa? O que essa chapa diz simbolicamente sobre os rumos que o Brasil vai tomar?
Ela mostra essa suposta aliança sagrada entre o Bolsonaro e o povo identificado com as Forças Armadas. Do ponto de vista simbólico é isso. Do ponto de vista prático, é um general golpista que comprou 100% o projeto Bolsonaro e que é servil a ele, muito mais do que foi o Mourão.
E aí vem essa história de seguro contra o impeachment, que aí o Congresso é obrigado a aturar o Bolsonaro, porque não vale a pena remover o Bolsonaro para colocar o Braga Netto.
O Braga Netto está fazendo o papel que o Mourão fez em 2018: simular a adesão das Forças Armadas ao Bolsonaro, servir de força-dissuasão de um impeachment frente ao Congresso.
Bolsonaro neutralizou a figura do vice-presidente da República como alternativa, como ele fez isso com a Procuradoria-Geral da República, como ele gostaria de fazer isso com o Supremo, nomeando 11 Kássios [Nunes Marques]. É uma sabotagem constitucional. Esse é o golpe nosso de cada dia.
Bolsonaro também lembrou aquele discurso que norteou a campanha dele em 2018: Lula iria contra a heteronormatividade, o PT seria a favor do kit gay, querendo que criança aprenda sexo na escola. Mas, diferentemente de 2018, parece que essa pauta de costumes não está tanto no debate dessas eleições mais. Isso procede?
Não estamos em 2018. Mas Bolsonaro está sempre no mesmo lugar. Para ele, não interessa se você está em 1985, 1990, 2005, 2015, 20018. Isso é um modelo político de negócio que o Bolsonaro desenvolveu. Ele pode se reeleger sempre dizendo absurdos, mentiras, prometendo matar 30 mil pessoas, dizendo que seus adversários são todos comunistas. Ele foi eleito sem precisar apresentar projeto, sem trabalhar. Depois transmitiu o modelo para a família. Eles são parasitas, a profissão deles é serem terroristas profissionais.
Isso foi se expandido para outras figuras. Tem o Daniel Silveira, o Eduardo Cunha – quer voltar –, tem um tanto de gente que descobriu a mina de ouro de cafetinagem da República. Rufianismo republicano. É o que acontece.
Bolsonaro está contra a parede?
Ele acha que, se for sempre espontâneo, for ele mesmo, repetir as mesmas coisas, vai ganhar sempre. Há um problema, porque ele não sabe fazer outra coisa, falar outra coisa que não seja isso. Isso é reforçado pelo aprendizado que lhe foi transmitido pelo filho do meio, o Eduardo, com essa teoria política reacionária do Steve Bannon[ex-estrategista de Donald Trump], que diz que você consegue fidelizar uma fatia do eleitorado simplesmente por ser contra qualquer pauta progressista. Isso é imune a coisas, por exemplo, se a economia está boa ou ruim, se o pais socialmente está bom ou ruim. Você repete sempre a mesma coisa.
Esse tipo de discurso dá uma certa blindagem contra um certo percentual, contra um acaso, a conjuntura. O problema é que a conjuntura de cada eleição é diferente da outra. A conjuntura de 2018 foi muito específica. De 30 em 30 anos, o sistema representativo do Brasil dá uma pane e elege-se um aventureiro. Já foi o Jânio Quadros, o Collor.
O Fernando Collor de Mello, que inclusive estava no lançamento da candidatura do Bolsonaro…
O Bolsonaro só não caiu igual os outros dois porque alugou o Centrão. Senão teria caído também. Embora tenha essa variação, que ele fidelizou a base.
Então, ele fica voltando com esses assuntos para não falar de economia, de inflação, de gasolina, do colapso das políticas na saúde, na cultura, ou de corrupção do Ministério da Educação.