Pode parecer incoerente que um governo que se gabe de ter conseguido bater recordes de arrecadação, que crescerá mais do que o previsto pelo FMI, que apresentará superávit e que diz ter recuperado a economia mais rápido que qualquer outro país do mundo feche 2023 sem dinheiro para pagar funcionários do INSS, emitir passaportes ou honrar as bolsas da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Parece, mas não é. De fato, a economia brasileira apresentou sinais de reação no segundo semestre, só que as escolhas da dupla Jair Bolsonaro e Paulo Guedes estavam tão focadas em liberar recursos olhando para a eleição que acabou por colocar a equipe econômica em uma sinuca de bico: paga contas ou fere a Lei de Responsabilidade Fiscal e o Teto de Gastos. E o mais irônico disso tudo é que Bolsonaro, muito provavelmente, pagará as contas que se acumulam com um cheque de R$ 23 bilhões conseguido por Luiz Inácio Lula da Silva.

Os sinais de que as coisas não iam bem para o funcionalismo começou ao fim de agosto, quando as universidades federais começaram a reportar falta de recursos para pagar conta de luz. Em setembro, foi a vez de o Ministério da Saúde admitir não haver recursos para a compra de medicamentos para o programa Farmácia Popular. Nesse mesmo mês foi a vez de a Polícia Federal sinalizar que haveria falta de dinheiro para manter a operação da emissão de passaportes. Na segurança, delegacias da mulher e especializadas em crimes virtuais e de racismo começaram a reportar não terem recebido o apoio do governo federal para manutenção dos programas de combate à violência. Quando o problema se alastrou, a conta ficou cara: mais de R$ 2,3 bilhões ao mês com o custeio para manter a máquina pública operante, uma premissa básica de qualquer governo. Nesse momento, ao menos sete universidades tiveram de suspender aulas, faltam remédios e vacinas nas cidades e aposentadorias estão comprometidos pela interrupção dos serviços e há registros de serviços fechados por falta de recursos em quatro estados.

CONTAS VAZIAS Incompetência fiscal do governo Bolsonaro ameaça pagamentos de aposentados e pensionistas do INSS. (Crédito:Antonio Cruz)

Como pode um governo que arrecadou tanto não conseguir pagar as contas? A resposta é a Lei de Responsabilidade Fiscal e do Teto de Gastos. Um gestor público não pode pegar um recurso extraorinário ou não previsto no Orçamento para custear dívidas fixas (como uma conta de luz ou um repasse que já era programado). Principalmente se ele manobrou o dinheiro que deveria estar guardado para o custeio desses serviços para outros fins. Então a questão da falta de dinheiro era inevitável quando, em novembro, o governo contingenciou R$ 5,7 bilhões dos recursos a serem aplicados no final do ano. Só que antes disso os sinais já eram claros, mas foram abafados pelo período eleitoral. Oficialmente, o argumento de Paulo Guedes é que o contingenciamento foi feito para poder cumprir um aumento de R$ 2,3 bilhões nos gastos previdenciários e o pagamento da Lei Paulo Gustavo, de R$ 3,8 bilhões para o fomento à cultura. O secretário do Tesouro Nacional, Paulo Valle, afirmou que mesmo com todo o esforço será difícil cumprir a cifra definida na lei de fomento à cultura. “Por ser uma despesa não recorrente, ela precisará sair da fatia do Orçamento que o governo pode mexer, que é o dinheiro dos ministérios”, disse.

SEM LUZ E lavar as mãos parece ter virado a métrica deste fim de mandato. Guedes já avisou que vai sair do País. Bolsonaro aparece vez ou outra com olhos distantes e marejados. Nem sombra de quem um dia foi. E o País segue sem comando. Na visão do ex-juiz do Tribunal de Contas da União Roger Martino Gradella, essa discussão deveria ter sido feita no segundo trimestre. “O momento certo era quando o governo mexeu no Teto para jogar precatórios para cima ou para liberar recursos para o Auxílio Brasil”, disse. Segundo ele, o TCU dá sinais semanais sobre o andamento das contas e relatórios mensais dizendo onde a corda vai apertar. “Eles sabiam que isso iria acontecer e poderiam ter resolvido.”

Resolver de outra forma, inclusive, é que o fizeram todos os presidentes desde a redemocratização. Em alguns casos a resolução foi chamada de manobra, como nos governos de Lula e Temer. Tem também os que manobraram antes da Lei de Responsabilidade Fiscal, como FHC e Collor. E há, claro, a pedalada que virou crime e derrubou Dilma Rousseff. Independentemente do autor da manobra, o fato é que montar um Orçamento público não é fácil e esse governo mostra desde 2019 que não pegou o jeito. No entendimento do colunista da DINHEIRO VanDyck Silveira, CEO e cofundador da EducPay, essa falta de capacidade de gerir recursos não é de agora, e os contigenciamentos são constantes desde 2019. Para coroar tudo isso, mais problema pela frente. “[Eles] fizeram um Orçamento para 2023 descabido e aprovaram um produto de ficção”, disse. Com essa filosofia do que “aprova agora e depois a gente vê o que faz”, o governo acabou colocando os pés pelas mãos e criando uma situação insustentável, que pode inclusive resultar na rejeição das contas pelo TCU e tornar Bolsonaro inelegível. A menos que um certo presidente eleito consiga mexer os pauzinhos.

O cheque de R$ 23 bilhões para Bolsonaro

Jonas PereiraJonas Pereira (Crédito:Jonas Pereira)

Antes mesmo de assumir o governo, o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva tem trabalhando para manobrar o Orçamento sem inferir em crime de responsabilidade. A saída escolhida pelo petista e sua equipe foi a PEC 32, ou PEC da Transição, que trata de colocar para cima do limite de gastos o Bolsa Família de R$ 600 e outros R$ 150 por filho de beneficiário, como prometido em campanha. Com tempo correndo contra, já que o Congresso entra em recesso na sexta-feira (16), o texto foi aprovado no Senado na quarta-feira (7) com 64 votos — mas veio com jabutis, muitos acordos e um cheque de R$ 23 bilhões para que o atual presidente consiga descontingenciar os recursos congelados e custear as áreas da máquina pública que correm risco de paralisação. No total, o texto prevê R$ 145 bilhões a serem utilizados sem entrar na ancoragem fiscal. O valor a ser usado ainda neste ano viria na forma de um gatilho que libera recursos diante de bons resultados na arrecadação, que foi o que aconteceu até agora. Também ficou acordado um prazo de dois anos para uso do dispositivo acima do teto, e não quatro, como negociava o PT. A matéria segue agora para apreciação na Câmara.

A medida foi bem vista pelo mercado, já que é consenso que ao menos o primeiro ano de mandato de Lula terá um forte caráter social e uma necessidade enorme de arrumar a casa. Erich Decat, chefe do time de análise política da Warren Renascença, afirma que o valor ter vindo abaixo dos R$ 175 bilhões e o prazo ter caído pela metade são pontos positivos. “É uma sinalização de que, pelo menos neste momento, a âncora fiscal não foi completamente derrubada”, disse.

Esse condicionante da arrecadação para garantir recursos acima do teto, no entanto, ainda divide opiniões. VanDyck Silveira, economista e colunista da DINHEIRO, afirma que há um caráter excepcional no comportamento da arrecadação, que em outubro bateu recorde de R$ 205 bilhões, mas não reflete a situação do Brasil. Atualmente, o cálculo para superávit ou déficit primário é uma conta simples: pega a receita, tira as despesas e vê o resultado. Essa conta exclui, por exemplo, os gastos com juros da dívida e os precatórios, mecanismos que estão transitado e julgado. Então, na avaliação de Silveira, eles deveriam estar nessa equação. “Só a inclusão dos precatórios já traria o ambiente fiscal pra um déficit primário”, disse. No apagar das luzes de Bolsonaro e holofote virando para Lula, o problema do Brasil continuará sendo fiscal e, embora ninguém queira assumir a paternidade, não faltam culpados para estarmos nessa situação.