02/11/2005 - 8:00
“Sapo não pula por boniteza, mas porém por precisão?. O dito capiau, recolhido por Guimarães Rosa e publicado no romance Sagarana, ajuda a entender o milenar dilema da arquitetura, o embate entre a forma e a função. Boniteza e precisão, eis a busca de Francisco Fanucci e Marcelo Ferraz, do escritório paulistano Brasil Arquitetura. Com 26 anos de parceria, e mais de 80 projetos erguidos, além da Marcenaria Baraúna, braço destinado aos móveis de madeira, Fanucci e Ferraz acabam de ganhar livro de luxo pela editora Cosac&Naify e exposição do mobiliário no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo. ?Eles fazem parte de uma geração de profissionais que procurou tratar a arquitetura, antes de tudo, como fato cultural?, diz Cecília Rodrigues dos Santos, doutoranda da Universidade de São Paulo, e responsável pela conexão entre a máxima de Rosa e o trabalho da dupla.
No mundo prático, das construções, os arquitetos não têm problemas em unir o antigo ao novo, em misturar concreto armado com madeira de lei, paredes caiadas com vidro. É a arquitetura cordial. ?Hoje, há preocupação exagerada pela aparência?, diz Ferraz. ?Nossa batalha é fazer o belo e o útil andarem juntos, de mãos dadas?. É caminho que se vê em obras públicas e particulares. No Theatro Polytheama, em Jundiaí, inaugurado em 1911 e reformado pela Brasil Arquitetura em 1995, nota-se a união da rusticidade original com materiais nobres, como o pau-marfim nos pisos, o azul-ultramar nas paredes, o dourado nas portas dos camarotes e a cortina de veludo vermelho na boca de cena. Na Casa do Tamboré, de 1989, em São Paulo, convivem o concreto aparente e um forro curvo de ripas de madeira. No livro, Fanucci vai direz que, na recuperação de prédios seculares, não se pode usar o esquema de arrasa-quarteirão e tampouco ceder à burocracia do Patrimônio Histórico: ?Acontece um incêndio em Ouro Preto. Decide-se construir um edifício em estilo colonial, idêntico ao destruído. Não há desrespeito maior a Ouro Preto do que fazer em 2005 uma arquitetura que quer imitar o Século XVIII. O modernismo gerou equívocos desse tipo?.
Discípulos de Lina Bo Bardi, a italiana que bagunçou o coreto no Brasil, projetista do Masp, assimilaram o gosto pela quebra de preconceitos, o prazer da curiosidade e o amor pela cultura popular e casas coloridas. ?Queremos o internacionalismo com bagagem própria para não sermos engolidos ou evaporados por nós mesmos?, diz Ferraz. É, diante da prancheta, a linha evolutiva do que celebrava o Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade nos anos 1920 e o Tropicalismo de Gil e Caetano nos 1960. O resultado é uma arquitetura que resulta em algo chique e paradoxalmente simple
É nos móveis da Baraúna, fundada com a participação de um outro sócio, Marcelo Susuki, já fora do time, que esse encontro se dá com rara nitidez. Fanucci e Ferraz fazem questão de dizer que são arquitetos de móveis, e não designers. ?Hoje se tropeça em designers, transformaram uma bela expressão em inglês, abrangente, em algo banal?, afirma Ferraz. Como arquitetos, ambos sabem o que desejam, por exemplo, de um banquinho, intitulado Caipira (Fanucci e Ferraz aparecem sentados nele nas fotos ao lado). ?São móveis sem bagaços, sem sobras, que seguem a lógica das máquinas e ferramentas e só sobrevivem se têm um bom funcionamento?. Em outras palavras: servem para sentar, e ponto. Nonada, a arquitetura à Guimarães Rosa dos dois criadores é um catálogo rico. Rosa, lembre-se, apesar de conhecer muito bem o sertão, inventava palavras rurais em seu apartamento urbaníssimo de Copacabana. A Brasil Arquitetura anda em trilho semelhante, ao criar obras ao mesmo tempo regionais e universais. Com toque brasileiríssimo, reconstruíram um bairro em Berlim Oriental. Induzido a comentar a existência de uma escola de arquitetura ao redor do escritório, Ferraz ri, faz silêncio e corrige: ?Somos no máximo uma turma?. É uma turma cujo trabalho pode ser resumido em duas palavras: bem viver.