Existe apenas uma maneira de tratar o mundo de forma adulta. Chamando as coisas pelos nomes que as coisas têm. E nesse campo o Brasil é muito frágil. Aqui, o cara que se nega homofóbico costuma dizer coisas como “eu recebo superbem em casa os amigos gays da minha filha”. E o cara que se declara antirracista afirma que o “meu melhor amigo é preto”. Isso não diz nada. Ou diz tudo. Só mostra que de homofobia ou racismo entendemos zero. Vale para todas as áreas. Por essas bandas do planeta, liberalismo ou neo-liberalismo virou palavrão para muita gente. Piora dentro do atual governo. Ou para boa parte do povo acadêmico, em especial do campo das humanas. A mesma turma que adotou o pavoroso “para além” e mal sabe a diferença entre “há e havia”. Não poderia ser diferente para nossa elite político-partidária que não assume nosso parlamentarismo cuspido & escancarado.

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Bloco liderado por Lira passa a ser decisivo em votações do governo

Coisa pequena? Eu diria que não. Na raiz desse tipo de ignorância está uma distorção explícita da Constituição: o sistema presidencialista lastreado nos três poderes. Balela. O que vivemos hoje é esse parlamentarismo travestido, ignorando inclusive a ratificação do desejo da sociedade pelo sistema presidencialista manifestado no plebiscito de 1993. Claro que inventar a reeleição depois do plebiscito foi mudar a regra depois de o campeonato começar. Até Fernando Henrique Cardoso já reconheceu publicamente a imbecilidade que produziu. Afinal, criou-se aqui uma eterna barganha em que o primeiro mandato só existe para tentar deixar de pé o segundo. E a Câmara pegou o bastão. Isso vai travar o governo Lula III. Assim como travaria qualquer governo.

O problema em Lula III é que há um novo tipo de Parlamento – desenhado especialmente nos últimos oito anos por nomes como Eduardo Cunha, Rodrigo Maia e Arthur Lira, respectivamente encarregados de levar adiante pedido de impeachment de Dilma Rousseff e de sentarem-se em cima de dezenas de iguais pedidos de impeachment de Jair Bolsonaro. Nestes, por um preço elevadíssimo: o eterno funcionário público & militar Bolsonaro entregou totalmente o trabalho de ser presidente – sobre o qual publicamente dizia odiar – para o Congresso. Deu no que deu. Hoje temos uma Câmara poderosa como nunca e uma governabilidade esvaziada como sempre.

Para piorar, nosso messias atual está muito aquém de suas duas primeiras versões. Patina onde não deveria, achando que sabe o que não sabe mais. A lição vem de Friedrich Nietzsche: aquele que luta contra monstros deve cuidar para que também não se torne um monstro, afinal, se você olha profundamente para o abismo, o abismo também olha para você. Em suma, Lula preside mudar a estratégia e a tática. Ainda preside o País como se houvesse presidencialismo. E a maior bomba deixada pelo lúmpen-medíocre Jair Bolsonaro não foram os Pazuellos & Tamares da vida, ou negacionismo, terraplanismo, desmonte de travas ambientais, a idiota briga com a China, um milicianismo nojento, o militarismo à base de gordos agrados de soldo, ou o ódio à vida. Mesmo com esse LinkedIn dos infernos, o pior legado foi enterrar o presidencialismo.

E Lula ainda não percebeu. Ou parece não ter percebido. Sem mensalão, apenas a distribuição de cargos não basta mais para acariciar as quase três centenas de parlamentares necessárias para colocar de pé qualquer projeto de governo. Donos de orçamentos secretos, de gabinetes estelares e canetadas regimentais muito distantes das Bics da jornada anterior, o Brasil adotou um regime de governo em que aprovar Reforma Tributária ou Arcabouço Fiscal vai sangrar as decências. Em outras palavras, Lula precisa entrar no jogo. E o jogo dele não estará nos holofotes globais. Seu jogo está neste porão latrino-americano. Vai que enfrentar essa é sua, Lula. Ou não será de ninguém.