“Mães de Haia” perdem a guarda dos filhos ao cruzar fronteiras em busca de segurança. Para especialistas, violência contra mulher justifica não retorno da criança ao país do outro genitor.Eram por volta de 6 horas da manhã quando a Justiça brasileira, acompanhada de policiais federais armados, entrou na casa de Julia e Isabella, então com 5 e 3 anos, que ainda dormiam na cama da mãe. Para o Estado, elas eram vítimas de sequestro pela própria mãe, que fugira da Irlanda para o Rio de Janeiro para se proteger do marido.

Ainda sonolentas, as meninas foram entregues só com a roupa do corpo ao pai, que cruzara o oceano para retomá-las.

Esse é o relato de Raquel Cantarelli sobre a última vez que viu, ouviu ou teve notícia das filhas, em 14 de junho de 2023. Ela é uma dentre várias “Mães de Haia” no Brasil e no mundo.

O termo se refere a mães que, pela Convenção de Haia de 1980, estão sujeitas à retirada dos filhos e à acusação de sequestro internacional de menores ao voltarem ao seu país de origem. Mesmo que tenham sido vítimas de violência doméstica.

“Quando eu finalmente pude respirar em paz, levaram as minhas filhas numa ação extremamente brutal”, lembra Raquel. “A última imagem que tenho é da minha filha com os bracinhos para fora, gritando, e o carro saindo em disparada.”

Fuga e, depois, volta

Isabella e Julia voltaram para morar no mesmo lugar onde, seis anos antes, Raquel reportara pela primeira vez às autoridades irlandesas que o então companheiro cometia diversas violências dentro de casa, inclusive abuso sexual contra a filha mais velha do casal e ela mesma.

Até hoje, não há decisão judicial conclusiva na Irlanda ou no Brasil sobre as denúncias. Em 2023, a Polícia Federal (PF) abriu inquérito sobre o caso após a repatriação.

Agora, o Brasil lidera uma discussão internacional para que a violência doméstica contra as mães seja entendida como motivo para proibir o retorno da criança. No Supremo Tribunal Federal (STF), duas ações diretas de inconstitucionalidade argumentam contra a repatriação imediata e que, onde há suspeita ou evidência de que as mulheres sofrem abusos, há risco para o menor de idade.

“O que chamam de Convenção de Haia, cooperação internacional e cumprimento de acordos, eu chamo de pesadelo”, Raquel disse numa audiência pública do Senado Federal neste ano.

Em 2019, a mãe e as duas filhas chegaram a ser resgatadas por um carro oficial do governo brasileiro e, mais tarde, embarcariam numa fuga por cinco países. Um relatório consular da época registrou situação análoga ao cárcere privado – elas estavam, no relato de Raquel, trancadas, sem comida suficiente, documentos, internet ou linha telefônica.

A nove mil quilômetros de distância, Raquel expressa temer que as filhas, hoje com 7 e 5 anos, sejam vítimas das mesmas violências que ela denunciara antes de deixar a Irlanda.

Em nota, os advogados que defenderam o ex-marido de Raquel no Brasil chamaram as acusações de falsas, argumentando que o seu cliente “teve a vida devassada pelo Ministério Público, e absolutamente nada foi comprovado.” Acusaram, ainda, a brasileira de injúria, calúnia e difamação.

Debate em dois Poderes

Com mais de 100 países signatários, a Convenção de Haia prevê que um menor de 16 anos retirado do país de residência habitual por um genitor, sem autorização do outro, deve ser retornado. A exceção é quando houver “risco grave” de “perigos de ordem física ou psíquica” ou “situação intolerável”, sem especificação sobre violência doméstica ou de gênero.

O sequestro internacional de menores é passível de processo criminal e prisão naquele que for considerado o país de residência habitual das crianças – neste caso, a Irlanda. Para Raquel, restou ver o quarto das filhas vazio e evitar entrar ali pelos últimos dois anos.

“Quando uma criança presencia a violência contra a mãe, ela também foi vítima de abuso. Isso tem que ser levado em consideração”, afirma Maria Berenice Dias, vice-presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam), que colabora com o debate no STF enquanto amicus curiae. Ela avalia que a convenção “trata crianças como objetos.”

Também tramita um projeto de lei no Senado para revisar a interpretação da convenção. E, para o segundo semestre deste ano, está prevista no Brasil a segunda edição do Fórum sobre Violência Doméstica e a Convenção da Haia de 1980, em favor da revisão da interpretação do tratado.

Perspectiva de gênero

Num contexto de aumento das taxas de divórcios, a convenção foi assinada com particular preocupação em proteger mulheres de eventuais subtrações dos filhos pelos ex-maridos. Mas quatro décadas de experiência trouxeram à luz outros efeitos.

“O desafio é olhar para a Convenção de Haia com a perspectiva da mulher e das dificuldades que uma mulher estrangeira tem em denunciar”, afirmou à DW a desembargadora federal Inês Virgínia, uma dentre seis juízes de enlace para a Convenção de Haia no Brasil, que se encarregam da aplicação e interpretação do tratado.

Pelo menos desde 2003, em aproximadamente sete a cada dez pedidos de repatriação de crianças no mundo, foram as mães que levaram os filhos para outros países, segundo uma pesquisa de 2015 feita para a Conferência de Haia sobre Direito Internacional Privado (HCCH, na sigla em inglês). O número sobe a nove no contexto das solicitações recebidas pelo Brasil.

“O tratado é travestido para o melhor interesse da criança, mas é instrumentalizado contra mulheres”, diz, por sua vez, Stella Furquim, cofundadora do Grupo de Apoio à Mulheres Brasileiras no Exterior (GAMBE).

Brasil entre os mais afetados

Em 2015, o Brasil foi o décimo segundo país que mais recebeu pedidos de retorno, com 46 solicitações, segundo a HCCH, dentre 2.270 no mundo todo. Só no ano passado, de acordo com o Ministério da Justiça e Segurança Pública, foram 77 pedidos para repatriar menores a outros países, dos quais 42 foram deferidos.

Já uma pesquisa realizada pela Revibra, rede de apoio às vítimas brasileiras de violência doméstica na Europa, estima que 98% das Mães de Haia brasileiras em casos judicializados de 2019 a 2022 tenham sofrido violência doméstica.

“Revisar a convenção significa reconhecer as múltiplas formas de violência que atravessam as disputas internacionais de subtração e garantir que o sistema internacional de proteção esteja centrado nos direitos, na segurança e no bem-estar das crianças”, afirma a senadora Mara Gabrilli, que liderou no início de julho a audiência pública no Senado sobre as Mães de Haia.

Relatores especiais da ONU já recomendaram a revisão da convenção para permitir a retirada de menores nesses casos. Segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), a exposição à violência doméstica contra um dos genitores pode ter impactos mentais e emocionais de longo prazo.

Desigualdade no exterior

Um dos pontos sensíveis que acompanham o debate sobre a reinterpretação da convenção é o acesso às provas dos episódios de violência – que geralmente acontecem entre quatro paredes – contra a mulher fora do Brasil.

“Muitas vezes os países não adotam uma postura proativa na condução de investigações. É necessário ter o engajamento das autoridades do país onde o fato aconteceu”, diz Boni de Moraes Soares, procurador nacional da União de assuntos internacionais da Advocacia-Geral da União (AGU). Segundo ele, o Brasil defende um papel destacado para a palavra da vítima.

Mulheres imigrantes estão frequentemente sujeitas a maior dificuldade de acesso à polícia e à Justiça, apontam especialistas. Elas também tendem a ser mais discriminadas por parte de autoridades e instituições ao tentarem denunciar abusos contra elas ou seus filhos.

“Ele dizia que, se eu morresse ali, ninguém se importaria comigo porque eu não passava de uma imigrante”, lembra Raquel.

Em outro país da Europa, Flávia (nome fictício) também viu suas denúncias contra o agora ex-marido serem arquivadas por falta de provas. Ela relatou às autoridades locais, pelo menos duas vezes, suspeitar de abuso sexual contra a filha desde o seu primeiro ano de vida.

Ao mesmo tempo, viu o caso de Raquel, recebido com comoção por parte da sociedade brasileira, caminhar para a retirada das suas filhas pelo Estado. Percebeu que não teria refúgio em casa.

“Fiquei com medo de voltar ao Brasil e ficar como sequestradora”, relata Flavia. Hoje separada do ex-marido, ela permanece no mesmo país. O pai detém a guarda da criança, agora com 6 anos, desde 2022. Flavia persegue a reversão da decisão nos tribunais.

Lutas quase sem fim

A AGU argumenta que a violência deve ser comprovada no curso do processo judicial de repatriação da criança, a fim de evitar que outros países entendam que o Brasil descumpre a Convenção de Haia.

Mas, para as Mães de Haia, a desigualdade no acesso à Justiça se prolonga também no Brasil. Cabe à AGU representar o interesse do Estado brasileiro – e dos genitores fora do Brasil – em fazer cumprir a Convenção de Haia. Elas, entretanto, contratam advogados para a própria defesa ou recorrem à Defensoria Pública da União.

“A convenção vai sendo usada para também repatriar as mulheres, que ficam presas a estes países”, diz a advogada especializada em direitos humanos Tamara Amoroso. Especialistas argumentam ainda que a Justiça Federal não tem a mesma sensibilidade que fóruns especializados em direito da família para tratar do tema.

Para Raquel, entretanto, o cenário mudou no fim do ano passado. O Supremo Tribunal de Justiça (STJ) determinou que Julia e Isabella voltem para casa, reconhecendo que há risco para as crianças. A mãe aguarda uma eventual resposta da Irlanda à notificação do pedido de retorno pelo Estado brasileiro.

“A decisão proferida pelo STJ está em confronto com a decisão proferida pelos tribunais irlandeses competentes, e a Irlanda, país soberano que é, não está sujeita ao cumprimento de decisões proferidas por tribunais brasileiros”, afirmam os advogados que atuaram na defesa do pai no Brasil.

Enquanto isso, Raquel rearruma o quarto das meninas com roupas, sapatos e brinquedos adequados para a nova idade das filhas. “Eu espero ter elas nos braços em breve”, diz.

Em nota, a PF esclareceu que atua em operações de busca e apreensão de menores com a função exclusiva de garantir a segurança da equipe responsável pelo cumprimento da ordem judicial brasileira, preservar a integridade de todos os envolvidos e prevenir conflitos. Sobre a diligência na casa de Raquel, ressaltou que estavam presentes uma oficial de justiça, representantes do Conselho Tutelar, um assistente social e uma psicóloga.

Como pedir ajuda

O Itamaraty orienta que brasileiras em situação de violência doméstica, independentemente de situação migratória, procurem o consulado ou embaixada do Brasil. O serviço ligue 180 funciona 24 horas por dia, inclusive do exterior e pelo WhatsApp: +55 (61) 9610-0180.

A cartilha Prevenção de Violências contra Mulheres Brasileiras no Exterior do governo brasileiro fornece elementos para identificar as diferentes formas de violência contra as mulheres e detalha os meios para proteção e denúncia para cidadãs brasileiras que moram em outros países.

Na Alemanha, mulheres vítimas de violência doméstica podem pedir ajuda em 17 idiomas, inclusive português, ao telefonarem para a linha de apoio do governo no número 116016.