O 9 de Janeiro vai entrar para o calendário da história do Brasil como um dos momentos mais emblemáticos do enredo político e social da República. Um novo 7 de Setembro. A data será lembrada como o dia seguinte ao infame domingo (8) em que ataques do extremismo bolsonarista levaram à invasão e à depredação dos prédios dos Três Poderes, na capital federal. Na noite de segunda-feira, um encontro reuniu as maiores autoridades do País. Do Executivo, o presidente, governadores ou vices de todos os estados e Distrito Federal. Do Legislativo, as lideranças das duas casas. Do Judiciário, os ministros do STF. E o Ministério Público, representado pela Procuradoria Geral da União. O que eles fizeram foi o gesto simbólico e definitivo de NÃO AO GOLPE. Foi a maior demonstração de união contra a incivilidade e a barbárie que os radicais criminosos praticam. Nossas lideranças institucionais têm o apoio da sociedade civil: 93% dos brasileiros condenam o que aconteceu em Brasília, segundo pesquisa Datafolha feita terça (10) e quarta-feira (11). E têm o apoio do mundo.

Foi um NÃO ao infame domingo de vidros quebrados, obras de arte destruídas, móveis incendiados e prédios invadidos por terroristas travestidos de patriotas. Sem resistência policial, os radicais tomaram conta do coração da República. Mas a balbúrdia ­— uma versão tupiniquim do ataque de trumpistas ao Capitólio, em 2021 — não durou uma tarde, resultou na prisão de mais de 1,5 mil delinquentes, na ordem de afastamento do governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, e de seu secretário de Segurança (Anderson Torres) pelo ministro do STF Alexandre de Moraes, em uma contraofensiva jamais vista. Ao mesmo tempo, dezenas de milhares de pessoas saíam às ruas em todo o País em defesa da paz e da harmonia democrática. O tiro golpista saiu pela culatra. O bolsonarismo experimentou a mais amarga de suas derrotas políticas: 55% dos brasileiros acreditam que Bolsonaro é culpado pelos eventos de domingo. Até mesmo o mercado financeiro, que já foi mais entusiasta do bolsonarismo, condenou os ataques e reagiu em favor da democracia.

JUNTOS CONTRA A BARBÁRIE Organizados pelo presidente Lula, representantes do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, por vezes rivais no campo político, se uniram contra o caos estimulado pelo ex-presidente. (Crédito:Ton Molina)

A expectativa de que o País poderia entrar em um ciclo de grave instabilidade, que se refletiria nos pregões da segunda-feira (9), não se concretizou. A Bolsa (B3) subiu 0,15%, aos 109.129,57 pontos, e o dólar fechou em alta leve de 0,40%, cotado a R$ 5,2575. Nada fora da normalidade. No mesmo dia, uma enxurrada de notas de repúdio em demonstração de apoio às instituições tomou conta do noticiário. Empresas e entidades se posicionaram. Os principais nomes da economia brasileira se uniram em um coro contra os ataques antidemocráticos. A Febraban, em manifesto assinado pelo presidente Isaac Sidney Menezes Ferreira, disse repudiar “com veemência as agressões ao patrimônio público nacional e a violência contra as instituições que representam o Estado Democrático de Direito”. A Natura & Co foi das primeiras e já na noite de domingo afirmou que repudiava o episódio. “Esses atos criminosos representam uma afronta à democracia brasileira, em uma tentativa de calar as instituições constituídas e silenciar os espaços públicos de diálogo. As cenas a que assistimos neste domingo se opõem a nossas crenças e razão de ser.”

CPI DOS ATOS GOLPISTAS Por outro lado, o apoio ao golpismo gerou — e ainda vai gerar — um alto custo para parlamentares e militares. Com a chancela do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), será instalada a CPI dos Atos Golpistas. A senadora Soraya Thronicke (União Brasil-MS) reuniu 45 assinaturas para a criação de uma comissão parlamentar de inquérito para investigar a invasão e a depredação dos prédios públicos. Em entrevista coletiva na terça-feira (9), Pacheco afirmou que considera “muito pertinente” a abertura das investigações. “Em relação a estes acontecimentos do dia 8 de janeiro, me parece muito adequado que isso seja objeto de uma CPI”, disse o senador. “Esse fato, pela gravidade, da magnitude dessa violação democrática, eu considero muito pertinente de uma CPI.”

O ataque à democracia, apesar de causar espanto aos olhos do mundo, era uma tragédia anunciada. Insuflados pelo ex-presidente Bolsonaro, fundamentalistas replicaram as cenas dos tumultos de 6 de janeiro de 2021 em Washington. A jogada foi cantada por antecipação pelo próprio Jair Messias. “Se não tiver voto impresso em 2022, vamos ter problema pior que nos EUA”, disse, ainda em janeiro de 2021. Como Donald Trump em 2016, Jair Bolsonaro já semeava, antes mesmo da eleição que venceu em 2018, a ideia de que qualquer resultado que não um triunfo maciço seria sinal de fraude e justificaria o uso da força por seus apoiadores. Com isso, comunicava o mais importante, de que independentemente de acreditar ou não nas mentiras que contavam sobre as eleições, sua base só reconheceria como legítima a vontade expressa nas urnas se ela fosse igual à dele.

E o reflexo, além de econômico, se dará igualmente no campo político. Na avaliação de André Naves, defensor público federal e especialista em Direitos Humanos e Sociais, os ataques depõem contra o futuro do bolsonarismo e comprometem as ambições de volta ao poder nas próximas eleições. “Ao contrário do que se viu na cerimônia de posse do novo governo, quando a diversidade e a inclusão subiram a rampa embaladas pelo Trenzinho do Caipira, de Villa-Lobos, no 8 de janeiro a infâmia invadiu o Planalto, deixando um rastro de destruição e desrespeito enquanto maculavam importantes símbolos da cultura e da democracia do Brasil”, disse.

Tirando alguns parlamentares isolados e o comando militar que se mostrou conivente, o restante da sociedade organizada ficou do lado certo da História. Inclusive, parte da ala racional que antes apoiava abertamente Bolsonaro murchou. A Federação das Indústrias de Minas Gerais (Fiemg), que em 2021 capitaneou um manifesto pró-Bolsonaro, condenou o ataque aos Três Poderes. Em nota, disse que ações hostis, como as que se viram, precisam ser investigadas, julgadas e punidas, seguindo o rito legal e as normas constitucionais, que devem ser cumpridas por todos os cidadãos brasileiros. “Reafirmamos o nosso compromisso com a legalidade e a democracia. Prestamos solidariedade aos profissionais de imprensa, servidores e agentes da segurança pública que foram agredidos no cumprimento de seu dever e atividade.” O setor de transporte e logística, base eleitoral do ex-presidente, seguiu na mesma linha e saiu em defesa da democracia. “O Sistema CNT se une aos Poderes constituídos da República para demonstrar sua indignação e desprezo em relação aos atos antidemocráticos e golpistas em Brasília, e para reafirmar sua solidariedade e máximo respeito às instituições atacadas”, disse Vander Costa, presidente da CNT.

@LulaOficial No cenário internacional a reação também foi contundente. O presidente americano Joe Biden escreveu no próprio domingo dos ataques perto das 21h de Brasília: “As instituições democráticas do Brasil têm todo o nosso apoio e a vontade do povo brasileiro não deve ser prejudicada. Estou ansioso para continuar a trabalhar com @LulaOficial”. Emmanuel Macron, da França, foi ainda mais curto e direto: “A vontade do povo brasileiro e as instituições democráticas devem ser respeitadas! O presidente @LulaOficial pode contar com o apoio incondicional da França”, postou duas horas antes de Biden. No meio diplomático a palavra ‘incondicional’ tem um peso que extrapola o senso comum. No dia seguinte, eles foram seguidos pelo chanceler alemão Olaf Scholz, para quem “os ataques violentos são um atentado à democracia que não pode ser tolerado”.

As duas maiores potências não ocidentais e parceiros de Brics foram na mesma linha. O Ministério das Relações Exteriores de Pequim afirmou, por meio de seu porta-voz, Wang Wenbin, que “a China acompanha de perto e se opõe firmemente ao ataque violento contra as autoridades federais no Brasil e acreditamos que, sob a liderança do presidente Lula, o Brasil manterá a estabilidade nacional e a harmonia social”, e conclui referindo-se ao país como um “parceiro estratégico”. Na Rússia, o poderoso Dmitri Peskov, porta-voz do Kremlin e da Chancelaria, disse que Moscou “condena da maneira mais firme as ações dos instigadores de distúrbios e apoiamos plenamente o presidente brasileiro Lula da Silva”. Todos foram seguidos por outros países. Mais do que distribuir notas de repúdio ou apoiar o julgamento de extremistas bolsonaristas, a grande tarefa agora será identificar organizadores e patrocinadores dos atos de vandalismo na capital federal. De acordo com Francisco Gomes Júnior, presidente da Associação de Defesa de Dados Pessoais e do Consumidor (ADDP), para chegar aos responsáveis logísticos, financeiros e políticos dos atos será utilizado até a geolocalização dos aparelhos celulares dos criminosos. Esse tipo de investigação, segundo ele, aconteceu nos EUA após a invasão do Capitólio e permitiu identificar centenas de invasores e puni-los. “Na era digital, é difícil que uma articulação desse porte não tenha deixado rastros”, afirmou. “Além disso, áreas de inteligência monitoram as mídias sociais e atividades suspeitas terroristas.”

CRIME E CASTIGO Para o economista e cientista político Fábio Andrade, professor de Relações Internacionais da ESPM e doutor em administração pública, as autoridades deixaram a invasão acontecer, pois os manifestantes já davam sinais de que sairiam dos acampamentos em frente ao Quartel General do Exército para ações mais extremistas. “Aparentemente, a Polícia Militar do Distrito Federal pouco fez para impedir a invasão dos golpistas”, afirmou. Na quarta-feira (11) foram expedidos 1.261 autos de prisão e apreensão nas investigações relacionadas aos ataques terroristas, segundo o ministro da Justiça, Flávio Dino. A maioria dos detidos estava no acampamento de bolsonaristas desmontado em Brasília. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) informou que o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios fará um mutirão para realizar audiências de custódia.

O futuro da democracia e da economia dependerá das punições aplicadas, segundo o economista Armando Castelar, professor da FGV-Rio e do Instituto de Economia da UFRJ: “Quanto mais rigor houver, mais rápida e sólida será a recuperação”, afirmou. Ao debelar com firmeza o golpismo, as instituições e a sociedade brasileira mostram maturidade para colocar na mesa a agenda que importa: a da reconstrução econômica de uma Nação desigual, mas que mostrou como nunca que está do lado certo da História.

A FÚRIA DA IGNORÂNCIA
Sem qualquer justificativa ideológica, a destruição de obras de arte e objetos históricos evidencia o desprezo dos golpistas pelo patrimônio que pertence ao povo brasileiro

É difícil entender as razões que levam alguém a sentir prazer na destruição de uma obra de arte. Ataques de vândalos a quadros e esculturas e objetos de valor incalculável têm ocorrido em diversas partes do mundo sob os mais variados argumentos. Há grupos de ambientalistas que justificam seus ataques a pinturas e esculturas como parte de uma estratégia para sensibilizar a opinião pública quanto à destruição do planeta. Valem-se da visibilidade das obras para amplificar suas mensagens de protesto. Foi assim com as telas de Botticelli, Monet, Van Gogh e Vermeer atacadas em museus da Europa no ano passado.

Mas não há propósito nem simbologia no quebra-quebra do domingo em Brasília, quando bolsonaristas invadiram os edifícios da Presidência da República, do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal. Os três prédios possuem grandes acervos de obras de arte e objetos históricos que foram doados ao longo de décadas ao povo brasileiro. É preciso ser muito ignorante para perfurar a troco de nada uma tela como ‘As Mulatas’, obra-prima de Di Cavalcanti (1897-1976), mestre do modernismo brasileiro. A obra é avaliada por galeristas em até R$ 20 milhões. Em entrevista à BBC, o diretor de curadoria dos Palácios Presidenciais, Rogério Carvalho, afirmou que “o valor do que foi destruído é incalculável pela história que representa”. O acervo não tem nenhum vínculo com o atual presidente Lula, odiado pelos bolsonaristas. Ainda não se sabe quanto a reconstrução custará, mas seria o caso de mandar o conta para os empresários que financiaram os manifestantes. Também foram danificadas as esculturas ‘O Flautista’, de Bruno Giorgi (1905-1993), avaliada em R$ 250 mil, e ‘Galhos e Sombras’, de Frans Krajcberg. Até a ‘Bandeira do Brasil’, pintada por Jorge Eduardo e tão representativa dos patriotas foi encontrada boiando em um espelho d´água depois que os invasores saíram.

Talvez o item cuja destruição seja a mais absurda é o relógio de Balthazar Martinot (1636-1714), produzido no século 17 pelo então relojoeiro do rei Luís 14, da França. Presente da corte francesa ao rei de Portugal Dom João VI, tem valor incalculável por ser um dos dois de Martinot que restaram no mundo. O outro está no Palácio de Versalhes.