Todo o primeiro escalão do governo Lula estava no Palácio do Planalto. Mas só dois de seus membros foram convidados a entrar no gabinete presidencial, na quarta-feira 23, após a reunião que integrou Paulo Bernardo, do Planejamento, e Romero Jucá, da Previdência, ao elenco. Era hora de decidir e Lula queria ouvir Antonio Palocci, da Fazenda, e José Dirceu, da Casa Civil. Mais uma vez, eles estavam em cantos opostos. Palocci, porém, não tinha o que oferecer. ?Está difícil fazê-los ceder?, relatou a Lula. Até minutos antes, o ministro esperava renovar o acordo de US$ 30 bilhões do País com o Fundo Monetário Internacional e se esforçava para conseguir concessões especiais que justificassem a decisão. Mesmo sem elas, Palocci insistiu. O argumento de Dirceu, foi, no entanto, mais forte: ?Presidente, podemos usar o fim do acordo como trunfo para acalmar o PT?. Diante dos seguidos nãos vindos de Washington, após breves 40 minutos de encontro o presidente definiu que não haveria acordo. O Brasil solicitava o direito de incluir o setor elétrico num pacote de obras de US$ 3 bilhões, fora do cálculo do superávit primário, e pretendia aprovar uma linha de crédito emergencial contra crises externas ? tal linha foi comparada a um cheque especial permanente. Sem um nem outro, na manhã da segunda 28, Lula e Palocci comunicaram o fim das negociações, buscando transmitir a idéia de que foi uma decisão soberana e de que o Brasil poderia ?caminhar com as próprias pernas?. Mas será este o fim da relação tortuosa do Brasil com o Fundo, que envolveu mais de US$ 100 bilhões em empréstimos? E será que isto fará bem à economia brasileira?

Ao longo dos 60 anos do FMI, nenhum País apoiou-se tanto em suas muletas quanto o Brasil. Ao todo, foram 17 acordos. O ex-ministro Delfim Netto, sozinho, assinou 11 cartas de intenção com o Fundo ? nenhuma foi cumprida. Para ele, continuar com o FMI agora, às vésperas de uma possível crise americana, não seria má idéia. ?É a linha de crédito mais barata que existe?, diz Delfim. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso assinou três acordos e o Brasil já vinha sendo monitorado há sete anos ? outros países que enfrentaram crises externas também recorreram ao FMI, mas ajustaram suas contas em pouco mais de um ano e logo disseram adeus. No caso brasileiro, a relação tem sido tão intensa que entrou de vez no imaginário. Até mesmo as damas de ferro do FMI, como a chilena Ana Maria Jul, a italiana Tereza Ter-Minassian e a simpática vovó alemã Anne Krueger, que chefiaram missões técnicas ao País, tornaram-se figuras populares, discutidas até em rodas de botequim.

Desta vez, porém, a separação entre o Brasil e o Fundo não significa uma inflexão nos rumos da política econômica. Ao contrário. O superávit primário foi mantido em 4,25% do PIB ? e, segundo Palocci, pode até ser ampliado para 4,5% do PIB. ?Vamos provar que podemos ser responsáveis por escolha própria, e não por imposição externa?, diz o ex-ministro da Fazenda, Maílson da Nóbrega. De fato, seria até estranho que um país com câmbio flutuante e superávit superior a US$ 30 bilhões na balança comercial continuasse amarrado ao Fundo. No passado, outros governantes também cortaram relações com o FMI. O caso mais notável foi o de Juscelino Kubitschek, que se livrou do Fundo para mudar a política econômica e implantar seu Plano de Metas. Lula, ao contrário, deixa o FMI, mas tentará provar que seu governo pode ser ?confiável? e até aprofundar a ortodoxia sem qualquer orientação externa. Ele sai do FMI, mas o FMI não sai dele.

AMOR E ÓDIO
Nenhum País conviveu tanto com o FMI quanto o Brasil

1954 FMI concede aval a um empréstimo brasileiro tomado junto ao Eximbank. É o início da relação.

1959 JK rompe com o Fundo para implantar o Programa de Metas. Saiu do FMI e mudou a política.

1965/1972 O governo brasileiro realiza acordos stand-by com o Fundo, que eram renovados todos os anos.

1982/1984 Brasil decreta moratória e Delfim Netto assina cartas de intenção jamais cumpridas.

1987 Os ministros João Sayad e Dilson Funaro anunciam nova moratória da dívida externa.

1991/1992 Zélia Cardoso de Mello tenta fechar um acordo, mas as negociações fracassam.

1998 Gustavo Franco e Pedro Malan fecham acordo de US$ 41,5 bilhões com o Fundo.

2003 O governo petista renova com o FMI um acordo stand-by de US$ 30 bilhões, herdado da era FHC.

2005 Lula e o ministro Palocci anunciam que o Brasil já pode andar com as próprias pernas.