Dos 21 chefes de Estado e de governo que estiveram na posse de Lula, no último domingo (1o), o argentino Alberto Fernández e o chileno Gabriel Boric — presidentes de duas das quatro maiores economias da América do Sul, junto de Brasil e Colômbia — quebraram o protocolo e fizeram o L. De sorriso largo e abraço caloroso, eles não se preocuparam em esconder a felicidade com o terceiro mandato do petista. Por duas razões. Havia um sabor de otimismo comercial e de revanche pessoal. No ano passado, com a polidez de um líder de torcida organizada, Jair Bolsonaro chamou Fernández de “bandido de esquerda” e acusou Boric de “tocar fogo no metrô”.

A verborragia do ex-presidente refletiu a deterioração diplomática e na corrente comercial dos países. Coincidência ou não, depois de quase três décadas como principal exportador para a Argentina, o Brasil (com 19,2% do total) perdeu em 2022 a posição para a China, que atingiu 21%, segundo o Indec, instituto de pesquisas do governo argentino. Paralelamente a isso, o governo uruguaio anunciou um bypass no Mercosul ao avançar em negociações bilaterais com a China, o que deve ser ratificado este ano. Isso sem falar da Venezuela, de Nicolás Maduro. Nenhum representante do governo de Caracas tinha autorização, até 31 de dezembro de 2022, para pisar no Brasil. Esse cenário de paralisia e desintegração regional, na avaliação do professor da paranaense Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), Luciano Wexell Severo, fez com que os sócios deixassem de atuar articuladamente. “O Mercosul vive um dos piores momentos, com esvaziamento e paralisia”, disse Severo, em uma entrevista à Agência Senado. “A desintegração política se tornou explícita.”

O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), sob gestões petistas, atuou como ferramenta de política externa. Pelos dados do banco, entre 1998 e 2018 (a primeira parte abrange o segundo mandato de FHC e os dois últimos anos já sob Temer) foram emprestados US$ 39 bilhões para financiar exportações de empresas brasileiras aos vizinhos, o que correspondia no câmbio da época a R$ 92 bilhões. Isso significa cerca de R$ 4,6 bilhões, em média, a cada ano. No mesmo período, os desembolsos totais do BNDES somaram R$ 1,792 trilhão, média de R$ 85 bilhões por ano. Ou seja, 5% do total que a estatal desembolsou no mesmo período foi para fora das fronteiras. Até aqui nada de novo sob o Sil, já que governos pelo mundo buscam financiar agentes externos para alimentar as receitas de empresas locais. No caso de governos petistas, as dúvidas estão mais relacionadas ao tipo de empréstimo. O mais polêmico deles foi o de US$ 176 milhões para a modernização do Porto de Mariel, em Cuba. O país ofereceu charutos como garantia, mas deu calote.

POLÊMICA E CALOTE Governo petista emprestou US$ 176 milhões a Cuba para construção do Porto de Mariel e teve charutos como garantia. (Crédito:Yamil Lage)

Apesar dos fumos do passado, o Brasil deverá retomar o protagonismo regional sob a gestão de Lula, segundo Welber Barral, ex-secretário de Comércio Exterior (2007 a 2011) e estrategista internacional do Banco Ourinvest. “Com mais habilidade diplomática e um maior alinhamento ideológico com os países vizinhos, o governo Lula vai reforçar iniciativas como Mercosul e Unasul”, afirmou Barral. “A interação comercial da América Latina, especialmente em um cenário de recessão internacional, é algo que muito interessa ao Brasil.” Falar do peso brasileiro nesse canto do planeta é quase algo inercial — o País tem 30% de todo o PIB (2021) de US$ 5,4 trilhões e 32% de toda a população de 670 milhões da região —, mas paradoxalmente foi uma agenda negligenciada nos últimos quatro anos.

MERCOMONEY Essa maior integração pode até resultar na criação de uma moeda única. Em reunião na terça-feira (3), em Brasília, o embaixador da Argentina no Brasil, Daniel Scioli, e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, oficializaram os primeiros passos para criar uma moeda paralela para o Mercosul. Segundo o embaixador, a criação da moeda não excluiria as outras em circulação nos países do continente. “Não significa a exclusão das moedas em circulação, mas a criação de uma unidade de valor real para a integração regional.” Para a Argentina, que praticamente não tem mais moeda, é excelente negócio. Pode ser um caminho para reverter a taxa de juros de 75% ao ano e uma hiperinflação que supera o patamar de 92% nos 12 meses encerrados em novembro. Por lá, quase tudo está ancorado no dólar, em vez do peso.

Por tudo isso, sob a ótica dos negócios o governo Lula deve, sim, fazer sorrir os países da região. Além de Argentina e Chile, os atuais presidentes da Bolívia, Equador, Uruguai e Venezuela, todos mais à esquerda, já se manifestaram sobre a perspectiva positiva de volta dos negócios com o Brasil no governo Lula. Para o economista e ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda Roberto Macedo, atual diretor da Faculdade do Comércio, esse efeito será mais positivo, pois há governos mais sintonizados com Lula do que a linha de Bolsonaro. “Não podemos exagerar na avaliação de que haverá um fortalecimento do bloco”, afirmou. “Mas dá para prever avanços nos relacionamentos bilaterais, pelo menos.” Pelo semblante dos presidentes dos países vizinhos na posse de Lula, as desavenças darão lugar a um bom e novo relacionamento.