Em entrevista, cientista político Christian Lynch avalia que tarifaço mira aspirações de autonomia do Brasil e que a Trump só interessa governos submissos. “O tarifaço é o começo de um processo sistemático de agressão.”O tarifaço imposto ao Brasil pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump — que deve entrar em vigor em 1º de agosto —, abriu uma crise diplomática sem precedentes entre os dois países.

Em uma carta publicada na rede social X (antigo Twitter), Trump condicionou o arrefecimento das tarifas de 50% às exportações brasileiras para os EUA ao imediato encerramento do julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro e também ao fim da regulação das big techs.

Para o cientista político brasileiro Christian Lynch esse é o maior ataque à soberania brasileira desde que submarinos alemães afundaram navios na costa do Brasil durante a Segunda Guerra Mundial, matando centenas de brasileiros.

“A última vez em que o Brasil foi agredido de tal magnitude por uma potência estrangeira foi quando Hitler mandou afundar nossos navios mercantes no Atlântico”, escreveu Lynch no X.

Professor da UERJ e coautor do livro O Populismo Reacionário: Ascensão e Legado do Bolsonarismo (2022), Lynch entende que as políticas interna e externa estão bastante entrelaçadas neste momento histórico.

Em entrevista à DW, Lynch falou sobre temas como soberania e democracia, analisando a conjuntura política atual, mas vislumbrando uma grande oportunidade histórica para o Brasil.

DW: Você disse que considera o tarifaço de Donald Trump, com a intromissão em assuntos internos brasileiros, como o maior ataque à soberania do Brasil desde que a Alemanha nazista afundou navios brasileiros na Segunda Guerra Mundial. Estamos mesmo diante de um momento histórico de tal magnitude?

Christian Lynch: Sim. É preciso entender o que significa “agressão” em cada contexto histórico. Naquela época, as agressões eram militares, as ameaças se davam por meios bélicos. Hoje, num mundo em que não se mandam mais soldados e o público não aceita sustentar guerras convencionais, as agressões tomam formas outras — e uma delas é o tarifaço. A ameaça tarifária funciona, no plano comercial, como o equivalente à ameaça atômica. Guardadas as diferenças de época, é, sim, a agressão mais grave que o Brasil sofre desde os torpedeamentos nazistas na Segunda Guerra Mundial.

Houve, claro, 1964. E o que aconteceu ali tem muito em comum com o que já está em curso e vai continuar acontecendo: a tentativa dos EUA de desestabilizar a democracia brasileira por meio de espionagem, atuação da CIA, cooptação de setores civis e militares da extrema direita, apoio à eleição de aliados e promoção de golpe de Estado.

A diferença é que, naquela época, o governo americano ainda se via como o guardião da democracia liberal, e precisava manter as aparências. Hoje, é comandado por uma lógica autoritária, extremista, que atua sem qualquer pudor, tanto internamente quanto no exterior. A agressão ao Brasil é feita à luz do dia.

Essa ameaça tarifária não será um episódio isolado. Aí está o erro de quem acha que se trata apenas de uma questão comercial, que pode ser resolvida por uma negociação técnica. Não é disso que se trata.

O tarifaço é o começo de um processo sistemático de agressão, que só termina quando Trump alcançar seu objetivo: instalar no Brasil um governo que sirva aos seus interesses — seja por meio de eleição, seja por golpe. Para isso, ele precisa ajudar a extrema direita brasileira a desmontar nossa democracia, neutralizar o STF e remover Lula do poder.

Na lógica do trumpismo, toda a América deve girar em torno dos interesses estratégicos dos EUA. É o que explica também seus ataques e pretensões expansionistas sobre a Groenlândia, sobre o Canadá, o reenquadramento do Panamá. O Brasil, com sua aspiração de autonomia, virou a grande pedra no sapato do trumpismo na América do Sul. Para Trump, só interessam chefes de Estado avassalados — como Milei, na Argentina.

Na semana passada, o presidente Lula esteve no Chile para uma reunião em prol da democracia com os líderes de Colômbia, Uruguai, Espanha e do país anfitrião. No dia seguinte, o colunista Edward Luce, do jornal britânico Financial Times, disse que o farol liberal-democrático do nosso hemisfério vem do Brasil e do Canadá. Você acha que o tarifaço de Trump acabou projetando o Brasil para uma posição internacional mais destacada?

Sim. Existe uma oportunidade de se realizar uma espécie de sonho geopolítico brasileiro. Esse sonho é o Brasil se firmar como um país tão importante no mundo quanto Índia, China, Rússia, países dessa ordem, mas sem o belicismo. O nosso sonho é ser uma espécie de gigante cheio de bonomia, um gigante simpático, alegre, boa-praça.

A resistência racional e organizada ao imperialismo trumpista abre para o Brasil uma oportunidade rara de avançar em seu antigo projeto geopolítico: o de se afirmar como uma potência autônoma e respeitada na América do Sul. E vale lembrar: esse projeto não é invenção da esquerda. Ele remonta ao século 19, e teve como formulador o Visconde de Uruguai, um conservador.

Para ele, a influência dos EUA deveria se limitar à América Central. Era também o sonho do Barão do Rio Branco, muitas vezes mal interpretado. Como disse Sérgio Buarque de Holanda, o Brasil gosta de se apresentar ao mundo como um gigante cordial. Uma potência pacífica, civilizada e respeitada.

A agressão de Trump ao Brasil pode significar a maior virada de chave da política nacional desde 2013. Naquela época houve a ascensão da ultradireita, a direita tradicional se legitimou ideologicamente e a esquerda perdeu o discurso. Agora, estamos vendo o inverso: a esquerda reencontrando suas bandeiras históricas — a defesa da soberania nacional contra o imperialismo, e a proteção dos trabalhadores. São temas que haviam sido deixados de lado em nome de uma agenda mais cosmopolita, mais identitária, muito influenciada pela globalização.

O Brasil tem uma tradição nacionalista forte, que prevaleceu ao longo de quase todo o século 20. Ela estava adormecida, mas não desapareceu. Também temos uma imaginação imperial herdada do tempo de colônia, que ainda mobiliza setores importantes do país — inclusive parte dos militares, que andavam flertando com agendas entreguistas.

A história não se repete, mas costuma rimar. E a rima, agora, é muito clara. Mas convém sempre não associar a defesa da democracia à defesa da esquerda exclusivamente. É preciso continuar a atrair o centro e a direita moderada. Do contrário, se entregará numa bandeja a Trump a narrativa mentirosa de que democracia liberal é sinônimo de comunismo.

O economista americano Paul Krugman, vencedor do Prêmio Nobel em 2008, elogiou o Pix dizendo que o Brasil pode ter inventado o futuro do dinheiro. Você já comentou que o movimento Make America Great Again (MAGA) se baseia na ideia de que os EUA estão em decadência, mas na verdade foram os demais países que avançaram. Os trumpistas têm capacidade real de fazer esses países recuarem?

Uma coisa é o que eles querem, outra coisa é o que eles conseguem fazer. O diagnóstico do MAGA é que os EUA estão em declínio, e que por isso precisam de um governo de exceção, autoritário, que restaure sua grandeza por meio da força. Só que, objetivamente, os EUA não estão em decadência. O que existe é um mal-estar social profundo com a transição de uma sociedade industrial e analógica para uma realidade pós-industrial, digital. Esse desconforto é global — não é só deles.

O que o eleitorado trumpista percebe como decadência é, na verdade, a sua própria perda de posição relativa. Dentro dos EUA, pela ascensão dos hispânicos, das minorias raciais, de pessoas com outras orientações sexuais. Fora dos EUA, pela ascensão de potências que, há poucas décadas, mal eram levadas em conta — como a China, a Índia e o próprio Brasil.

No Brasil também vimos algo assim. Parte da classe média antipetista achou que estava ficando mais pobre porque os pobres estavam se aproximando dela. Não era decadência, era diminuição da desigualdade. Nos EUA, o fenômeno é mais complexo, mas a lógica psicológica é semelhante. De todo modo, os EUA não perderam poder, o que aconteceu foi que o mundo avançou. Houve uma desconcentração do poder global, antes centrado no Atlântico Norte, causada pela própria globalização financeira. E os radicais de direita americanos não conseguem lidar com isso.

Quanto ao Brasil, não somos mais o país periférico de 1942, nem o de 1964, tampouco o de 1990. A despeito do nosso vício de autodepreciação, o chamado “complexo de vira-lata”, o Brasil deixou de ser periférico. Continuamos desiguais, sim, e não temos bomba atômica, mas temos peso: população, economia, presença regional. E nossa dependência direta dos EUA é pequena. Só 2% do nosso PIB depende deles. O tarifaço incomoda, mas está longe de ser um golpe fatal. É um arranhão, não um soco no queixo.

Mas que racionalidade existe nas ações de Trump contra o Brasil? Ele costuma recuar de tarifas, embora não saibamos se será o caso dessa vez. Já há efeitos adversos nos EUA, com pessoas estocando mantimentos e alta de preços. Há lógica no que ele fez ou é mera impulsividade?

Há uma lógica, sim. Mas é a lógica própria de um projeto político reacionário. Para o trumpismo, a democracia liberal é uma forma disfarçada de comunismo. O inimigo precisa ser eliminado, dentro ou fora do país. O método é sempre o mesmo: intimidação, mentira e suborno. Qualquer país que não se submeta automaticamente a essa lógica é visto como inimigo.

Trump age como um imperador do Baixo Império Romano. Se apresenta como papa, como rei, diz que precisa governar acima da lei para salvar os EUA — e também o mundo. E isso não é teatro, é real. É com base nessa postura tirânica que ele toma decisões. Tudo é na base da lacração, da bravata, da porrada. Quem não concorda vira inimigo mortal, até um bilionário como Elon Musk, que há pouco era tratado como melhor amigo.

Mas essa lógica também é atravessada por impulsos caóticos. A racionalidade deles não é econômica nem estratégica, é emocional, messiânica, autoritária. Eles acham que podem fazer o relógio andar para trás. A agressividade do trumpismo nasce de uma ideologização extremada da política, girando em torno do personalismo radical de Trump. E isso gera decisões erráticas, desconectadas de avaliações objetivas do equilíbrio de forças.

Resultado: temos uma agressão que é intensa, mas também caótica. Não adianta achar que isso se resolve com concessões comerciais. Não se trata de comércio, e sim de geopolítica. Trump não quer acordo, quer submissão. O Brasil, para ele, deveria renunciar à própria autonomia.

E há ainda um componente de subestimação. Eles não acreditam na resistência dos outros. E por isso, com frequência, acabam reforçando os que tentam derrotar. É o que estamos vendo agora: Trump está se tornando, no mundo inteiro, um grande cabo eleitoral involuntário dos que ele chama de inimigos. Foi assim no México, na Colômbia, no Canadá, na Alemanha, na Dinamarca e na Austrália.

Considerando o temperamento de Trump, caso lhe seja conveniente, ele pode descartar Bolsonaro?

Não é muito fácil, porque Bolsonaro é o espelho dele no Brasil. A cartilha primária do bolsonarismo sempre foi o trumpismo. Bolsonaro e sua família sempre lhe cobriram das reverências as mais rastejantes, como dizer, literalmente, que são apaixonados por ele, que ele é o maior líder de todos os tempos. Também buscam copiá-lo na forma de governar, e inclusive na tentativa de golpe de Estado depois da derrota eleitoral. A inelegibilidade e a possível condenação de Bolsonaro à prisão por tentativa de golpe de Estado são uma lembrança permanente e pessoal a Trump do que poderia e deveria ter acontecido com ele em um sistema político menos disfuncional que o norte-americano.

Mas é claro que, mudando as circunstâncias, ele pode apoiar um candidato de extrema direita apoiado pelo próprio Bolsonaro, seja um de seus filhos ou não. E, infelizmente, nesse último caso, não falta gente disposta a se oferecer: candidatos a deputado, senador, governador, procurador-geral da República. Gente desfrutável e oportunista, descobrimos no último governo Bolsonaro, que é o que não falta. Mas agora ficou mais difícil, porque a interferência externa está mais escancarada e bem mais impopular. Tarcísio de Freitas que o diga.