14/06/2006 - 7:00
Nos últimos anos, a Multibrás, dona de duas marcas estreladas, Brastemp e Consul, colocou em marcha uma locomotiva que, sem alarde, ganha velocidade rapidamente. Ela atende pelo nome de Compra Certa, um sistema de venda direta de produtos ao consumidor, sem parar na tradicional estação do varejo. Trata-se de um negócio explosivo em vários sentidos. Explosivo em seu potencial de crescimento. A média de faturamento mensal desse canal de vendas encontra-se entre R$ 35 milhões e R$ 40 milhões, mas há momentos de picos, como ocorreu em novembro de 2005, quando o total arrecadado chegou próximo de R$ 60 milhões. Uma parte desse montante vem da comercialização de outras marcas, mas a maior parte vem de itens da própria Multibrás, o que significa que a participação do Compra Certa no faturamento da Multibrás ronda os 10% dos quase R$ 5 bilhões anuais. Isso coloca o programa entre o quarto e o quinto maiores clientes da companhia. E justamente aí está o outro lado explosivo do Compra Certa. O avanço desse sistema pode arrebentar de vez a relação entre a indústria e o varejo ? relação sempre marcada por tensão e conflitos.
Por isso, a Multibrás esforça-se para conter a tentação de fazer barulho sobre um canal que lhe oferece boas perspectivas de crescimento. Por isso também recusou os freqüentes pedidos de entrevistas da DINHEIRO para falar sobre o assunto. Até agora, tem sido bem-sucedida nessa postura. Duas das maiores redes de varejo do País, ouvidas pela reportagem, acreditam que a fatia de vendas nesse caso não supera 5%. Uma percepção distante da realidade. Em 2004 e 2005, o volume de negócios dessa modalidade cresceu respectivamente 50% e 36%. ?Até onde eu sei, ainda é um patamar baixo no mercado. De tempos em tempos, a indústria cai na tentação de criar seus próprios canais de venda. E nós sempre soubemos reagir?, diz enigmaticamente um empresário do setor.
Os resultados obtidos até aqui parecem credenciar o Compra Certa a um futuro brilhante. Atualmente, porém, o presidente da companhia, Paulo Periquito, administra uma espécie de cabo-de-guerra. Os defensores do Compra Certa alegam que o ele garante retorno financeiro para uma corporação que fatura muito (R$ 5 bilhões), mas lucra pouco ? em 2005, a última linha do balanço registrou apenas R$ 65 milhões. A venda direta, advoga esse grupo, também se constitui numa cidadela contra a força avassaladora do varejo (leiam-se Casas Bahia, Ponto Frio e Magazine Luiza, por exemplo). Só a Casas Bahia são responsáveis pela venda de um terço de toda a produção de linha branca do País. Nas negociações, os preços são praticamente impostos por esses titãs.
Há, porém, argumentos contrários. Um deles vem da própria matriz da Multibrás, o grupo americano Whirlpool. De lá, algumas vozes questionam se o envolvimento profundo na comercialização de produtos se encaixaria na vocação da companhia: a fabricação da chamada linha branca. Os americanos e alguns dos executivos brasileiros levantam uma série de riscos embutidos na operação, frutos do modelo desenhado para o negócio. A Multibrás montou uma rede de 14 representantes independentes, espalhados por todo o território brasileiro. Essas empresas nomeiam agentes em diversas cidades, que, por sua vez, mantém suas equipes de vendas. Dessa forma, a Multibrás possui hoje um exército de mais de quatro mil vendedores. Para a abordagem aos clientes, utilizam o sistema porta-a-porta e convênios com associações profissionais, empresas e outros tipos de entidades. O consumidor tem dois tipos de financiamento para arrebatar produtos. Um deles é o parcelamento em dez vezes. O vendedor recolhe a primeira parcela no ato da venda e as demais são pagas com um carnê. A outra modalidade foi batizada de compra programada, que oferece itens de outras marcas como Sony, Semp Toshiba e Kodak. Nela, o valor pode ser pago em 12 prestações. A entrega ocorre logo após a quitação da terceira, quarta ou sexta parcela, dependendo do produto adquirido. Aí está outra vantagem do programa. A Multibrás pode planejar sua produção e evitar excesso de estoques.
Mesmo assim, estabeleceu-se um tenso debate a respeito do futuro do Compra Certa. Por determinação de Paulo Periquito, um grupo de trabalho, liderado pelos executivos Renato Cassou e Cláudio Rebelo, estuda alternativas para aprimorar a operação do sistema. Entre seus desafios está a redução do nível de inadimplência, hoje na casa dos 8%. Mais: muitas vezes, os vendedores marcam visitas, não aparecem nem sequer avisam. Há também alguns poucos casos de fraude. Por exemplo: o vendedor utiliza um CPF falso, simula um negócio, apanha sua comissão e paga as prestações somente até receber o produto. A partir daí, o consumidor fictício fica inadimplente. Na coluna dos contras há ainda um risco trabalhista. Vendedores dos representantes podem alegar uma relação de trabalho presumida com a Multibrás e pleitear incorporação ao quadro de funcionários da companhia. Mas a pergunta que não cala na cabeça de Periquito e de sua equipe é uma só: o retorno obtido com o Compra Certa compensa o risco de uma reação dos varejistas?
A Multibrás toma certos cuidados para não despertar a atenção (e a ira) do comércio. Retirou a marca Brastemp do nome do sistema. Antes era Compra Certa Brastemp. Na média, os preços dos produtos oferecidos nessa modalidade não ficam muito distantes daqueles encontrados nas lojas de eletrodomésticos do País ? em alguns casos são pouco maiores, em outros, pouco menores. Isso significa que a margem da empresa é maior? Não necessariamente, responde Alexandre Garcia, analista da Ágora Sênior, maior corretora de valores do País. ?O varejo é mais eficiente na logística de entrega para o consumidor do que a indústria. Esse item pode consumir parte da margem obtida com a venda direta?, avalia ele. Diante desse quadro, poucos arriscam uma previsão para o Compra Certa. O sistema pode ser aprofundado e até se tornar uma empresa independente. Ou pode ser expurgado da estratégia da companhia, o que levaria a Multibrás a passá-lo adiante. Enquanto não há definição, a locomotiva avança, acirrando ainda mais a já tradicional queda-de-braço entre a indústria e o varejo.
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R$ 5 bilhões é o faturamento anual da Multibrás. Cerca de 10% vem do Compra Certa |