19/10/2001 - 8:00
O presidente Bush começou a Operação Liberdade Duradoura com 99,99% de aprovação. Na semana passada ele destruiu um asilo ? a versão da ONU é que ele dizimou um hospital ? e atacou áreas residenciais em Cabul, com vítimas civis. Bush segue na sua contra-ofensiva. Mas de que jeito? Os mísseis que começaram a chover sobre o Afeganistão, no início de outubro, parecem ter atingido mais os alicerces da popularidade do presidente do que as cavernas onde se escondem Osama Bin Laden e seus liderados. Aqui e ali, alguns sinais de fissura já aparecem na ampla (e frágil) rede de aliados. Emissários da ONU na Ásia Central criticaram duramente os ataques americanos que atingem a população civil no Afeganistão. As imagens de crianças afegãs feridas causam forte impacto nos americanos, ao contrário das cenas de bombas destruindo instalações militares divulgadas pelo Pentágono.
Bush e seus soldados cometeram diversas trapalhadas e mandaram pelos ares a história de guerra cirúrgica e asséptica. Foram duas as bombas que caíram ?acidentalmente? sobre a área residencial da capital afegã Cabul. Uma terceira é que desabou sobre um hospital na cidade de Herat. Abriu-se assim a temporada de morte de civis, mulheres e crianças, o elemento que expõe feridas não cicatrizadas da memória americana. O Talibã logo falou em 100 vítimas fatais. Os EUA classificaram o número de mentiroso. Os detalhes do ?acidente? revelam a dimensão da tragédia. As bombas lançadas sobre as áreas residenciais são de fragmentação, ou seja, explodem e lançam outras menores. Nem todos esses filhotes, porém, foram detonados. Pousaram em solo afegão e por lá ficaram, como minas terrestres que podem explodir mediante um simples toque de pé. A cor e o tamanho são semelhantes aos dos pacotes de alimentos lançados pelos aviões americanos. A população pode se confundir. Detalhe importante: a fonte dessas informações não é um membro do Talibã, mas Richard Daniel Kelly, diretor do programa de retirada de minas terrestres patrocinado pela ONU.
Bush enroscou-se mais ainda quando seus auxiliares tentaram explicar como aconteceu aquilo que não deveria acontecer. A frase é da porta-voz Victoria Clarke: ?Temos enorme cuidado na hora de escolher os alvos e lamentamos profundamente os danos colaterais.? No dicionário da assessora Victoria, danos colaterais significa morte de pessoas inocentes. Se é dessa forma, as 5 mil vítimas dos atentados contra o World Trade Center em 11 de setembro também podem ser chamadas de danos colaterais da guerra declarada pelos terroristas aos EUA?
É provável que a resposta de Victoria seja não. Mas tratar coisas iguais de forma diferente parece ser uma das marcas de Bush. O cerco ao Antraz foi rápido e eficiente quando a bactéria foi identificada no Senado. A mesma agilidade não foi vista em relação ao correio americano. Apenas uma semana depois das primeiras cartas com Antraz chegarem aos destinatários, o governo iniciou uma mobilização para proteger os carteiros dos riscos de contaminação. Até a semana passada, 15 casos haviam sido notificados e três pessoas, morrido. O sindicato dos carteiros chegou a organizar protestos contra o presidente. Era mais uma fissura. E essa, em pleno território americano.
Bush erra muito porque a história lhe reservou um papel que tem dificuldade em representar. Em tempos de conflito, em que diplomacia e negociação são moedas fortes, a postura auto-suficiente típica dos presidentes americanos é um empecilho.