09/04/2003 - 7:00
DINHEIRO ? Como ficará o sistema econômico mundial depois da guerra no Iraque?
PAULO TARSO ? O sistema econômico está sofrendo pouco. O petróleo está firme, com os preços bastante razoáveis. O fluxo de capital para os países emergentes também não está sendo afetado. A vítima principal da guerra é o sistema político internacional, estruturado em torno da ONU. O unilateralismo do presidente George W. Bush está destruindo a ONU. Ele é um sujeito muito intransigente e impérvio às argumentações. Nem o papa conseguiu dissuadi-lo.
DINHEIRO ? Onde a guerra afeta o Brasil?
PAULO TARSO ? É péssimo para nós o colapso do sistema multilateral. Esse sistema é uma proteção que dilui nossas fraquezas ao obrigar as grandes nações a respeitar as regras do jogo. No momento em que os americanos quebram as regras, prevalece a lei do mais forte. E não somos nós.
DINHEIRO ? Como será possível reconstruir uma nova ordem?
PAULO TARSO ? Terá que se dar em torno dos Estados Unidos. Não vai ser nada fácil para eles, pois há uma reação antiamericana disseminada. Mas não há nada possível de se fazer no mundo sem os Estados Unidos, nada é relevante sem eles. O Tribunal Penal Internacional, por exemplo, não vai funcionar direito enquanto os americanos não aceitarem entrar.
DINHEIRO ? Qual o momento para começar as negociações?
PAULO TARSO ? Agora está muito difícil conversar. O mundo vai ficar esfacelado enquanto os americanos mantiverem essa atual política unilateral. É necessário que se dê uma certa distância da guerra, de três a quatro anos. Não há nada a ser feito no atual mandato de Bush. A atitude dele é imperial. Mas ele vai passar um dia. Por isso a próxima eleição americana vai ser determinante para o futuro das relações internacionais. A popularidade de Bush é imensa nos Estados Unidos e ele tem tudo para ser reeleito. Mas seu futuro depende do desfecho da guerra. Se morrer muito americano, será criada uma forte pressão interna, como ocorreu no Vietnã, e Bush pode ser derrotado politicamente, abrindo caminho para o diálogo. É por isso que a humanidade vive hoje um paradoxo terrível, no qual a carnificina que poderá virar a batalha de Bagdá será determinante para o futuro das relações internacionais.
DINHEIRO ? Qual é o papel do Brasil nesse tabuleiro?
PAULO TARSO ? A reconstrução da ONU só se dará depois
que os Estados Unidos renovarem a confiança no sistema
multilateral e se acertarem com os coadjuvantes, a Alemanha, França, Rússia e o Japão. O Brasil pode entrar como ator
secundário, como um free-lancer com credenciais históricas para propor soluções construtivas. A nosso favor, conta muito o fato de mantermos relações impecáveis com todos os dez países fronteiriços. Nosso ponto fraco é o fato de a América Latina ser hoje muito menos importante no contexto mundial do que foi durante a construção do atual sistema, logo após a II Guerra Mundial. Além disso, o peso do voto brasileiro está diluído em todas as instâncias com o de países como Antigua e Barbados, no Caribe.
DINHEIRO ? O presidente Lula fez duras críticas aos Estados Unidos. Como o sr. avalia a atuação externa do presidente?
PAULO TARSO ? O Lula é visto entre as principais lideranças mundiais como alguém com muita legitimidade interna. Chama atenção o fato de ter 53 milhões de votos. Isso lhe dá uma autoridade muito grande para conversar e melhora o perfil internacional do País, com bons reflexos para a economia. Mas há uma questão de ordem pragmática a ser analisada. O Lula pode estar brilhando neste momento como estadista internacional. Mas na hora que o torniquete apertar no pescoço do ministro Antônio Palocci, seremos obrigados a pedir de novo ajuda aos americanos.
DINHEIRO ? O sr. acredita que os Estados Unidos vão
retaliar o Brasil?
PAULO TARSO ? Acho que não vai chegar a tanto. Mas os Estados Unidos sempre foram nosso principal parceiro internacional. Se porventura tivermos mais uma crise financeira, como tantas anteriores, teremos que recorrer outra vez à boa vontade dos americanos. Sempre foram eles quem nos socorreram, não foram os europeus. Não foi a Argentina, e muito menos a França. Lembre-se que é o Tesouro americano quem banca o FMI e avaliza todas as transações financeiras internacionais. É bom, portanto, que o Palocci dê um jeito de não precisar de mais dinheiro este ano, pois vai ficar muito chato ter que pedir socorro ao Tio Sam.
DINHEIRO ? O sr. defende a idéia de o Brasil apoiar a invasão do Iraque por interesses econômicos, como fizeram Portugal, Espanha e Itália?
PAULO TARSO ? Ainda que tal barganha fosse moralmente aceitável, para nós seria inviável. É claro que os americanos ficariam encantados se tivéssemos uma atitude pró-ativa, mas isso não nos traria nenhuma vantagem a curto ou longo prazo. Até do ponto de vista comercial, tenho lá minhas dúvidas se eles fariam concessões em troca de apoio político. Eles estão tão dogmáticos, que acham que todos têm que ser a favor deles por imperativo ético.
DINHEIRO ? É um bom negócio o Brasil estreitar as relações com a França como alternativa aos Estados Unidos?
PAULO TARSO ? Se precisarmos de dinheiro, a França não vai nos ajudar. Eles não têm bala para isso, e mesmo que tivessem, lembre-se de que a relação histórica dos franceses com os países menores é colonialista, jamais paritária. Nossa relação com eles é complicada. Eles têm muito interesse no mercado brasileiro de tecnologia. Vide o Sivam. Já o interesse que nós temos neles é pela abertura do mercado agrícola, assunto tão imbricado na cabeça do francês que eu não vejo como possam nos fazer qualquer concessão.
DINHEIRO ? O Iraque já foi um aliado importante para o Brasil?
PAULO TARSO ? Foi. Hoje o Iraque não tem relevância para nós. Nos anos 70, chegou a ser nosso principal mercado na exportação de veículos, serviços, carne e armamentos. Chegamos a vender para eles 350 mil automóveis, é coisa pra burro! Vendemos também toda a família de carros de combate da Engesa e foguetes da Avibrás. Mas o Iraque nunca foi um aliado importante. Aliado pressupõe uma relação política intensa, algo que nunca houve. Tivemos, sim, uma relação econômica muito ativa.
DINHEIRO ? Mas chegamos até a manter uma parceria para fazer a bomba atômica.
PAULO TARSO ? Dizem que houve isso, fala-se muito, mas não participei. Se a bomba tivesse se materializado, teria sido um ato muito questionável nos metermos nessa história. Mas hoje o Iraque é irrelevante para nós, com Saddam ou sem Saddam.
DINHEIRO ? Como é Saddam Hussein?
PAULO TARSO ? Ele está sendo canonizado em todo o mundo graças à política desastrosa de Bush. Entre os árabes, é a principal liderança. Que outro faz par com ele? Yasser Arafat? Ele está baleadíssimo. Osama Bin Laden? Não o considero um líder verdadeiro. Temos que admitir que Saddam também tem uma popularidade espantosa no Iraque, é quase uma unanimidade, graças, em grande parte, ao massacre de seus opositores. Já estive algumas vezes com ele. É um sujeito de enorme carisma. É alguém diferente, muito firme, alto, com um olhar muito penetrante. É um homem duríssimo. Matou os genros, enforcou o prefeito de Bagdá, que era seu grande amigo. Confesso que não gostaria de ser interrogado por Saddam. A verdade, que os americanos querem esconder, é que Saddam Hussein é cria da CIA. Da década de 70 até o fim da guerra com o Irã, ele era interlocutor da CIA. Foram os americanos que armaram Saddam. Com a ajuda dos franceses e dos alemães.
DINHEIRO ? Tem sentido a opinião pública brasileira estar toda a favor do Iraque e contra os Estados Unidos?
PAULO TARSO ? Diante da prepotência de Bush, é muito mais fácil demonizar os americanos do que ser racional. Mas os brasileiros precisam lembrar que a atitude de oposição da França aos Estados Unidos não é em defesa da ética internacional, mas de seus próprios interesses econômicos no Iraque. As empresas francesas têm muitas concessões de petróleo iraquiano. Inclusive de campos petrolíferos descobertos pela Petrobras. A história é ilustrativa. Logo que subiu ao poder, Saddam resolveu tirar à força dois campos gigantes descobertos pela Petrobras em regime de contrato de risco. Entregou-os a seguir à francesa Elf. Foi preciso que o então ministro Delfim Netto desembarcasse em Bagdá para negociar compensações parciais ao Brasil.
DINHEIRO ? Saddam usou brasileiros como escudos humanos na primeira Guerra do Golfo, em 1991?
PAULO TARSO ? Ele não quis dar permissão de saída para 450 brasileiros que trabalhavam no Iraque. Retiveram por lá muitos estrangeiros já imaginando que Bagdá iria ser arrasada pelas bombas. Era um ato de insensatez. Eu era embaixador em Londres e fui enviado para negociar uma saída. Chamei a atenção deles para o ato de insanidade que estavam cometendo. Funcionou o argumento de que depois daquele episódio iria ser muito difícil uma empresa brasileira querer trabalhar no Iraque.
DINHEIRO ? Qual o desfecho da guerra?
PAULO TARSO ? Sugiro tentarmos entender a cabeça de Saddam. O personagem histórico mais tangível para compará-lo é Solano López, o caudilho paraguaio que, acuado pela Tríplice Aliança, entrou em guerra com as grandes potências da época. Solano não se rendeu e agüentou até o fim. Quando terminou a Guerra do Paraguai, sobraram menos de 3 mil homens adultos no País e até hoje, um século e meio depois, a nação não conseguiu se recuperar. Saddam é um sujeito capaz de destruir completamente o país para não se render. E isso pode matar muitos americanos. Examinemos o que está ocorrendo nos primeiros dias de guerra. Os americanos atacaram com armas sofisticadas, helicópteros Apache preparados para vencer qualquer um numa guerra eletrônica, mas que estão sendo abatidos por simples camponeses que atiram na turbina, debaixo para cima, com velhos fuzis. Enfim, prevejo um final sangrento para os dois lados.
DINHEIRO ? Como ficam as negociações comerciais?
PAULO TARSO ? Existe um isolamento do sistema comercial que o tem feito funcionar bem. O Brasil impôs sanções ao Canadá por causa da Bombardier, a China já entrou na OMC.
DINHEIRO ? Qual o grande perigo para o Brasil?
PAULO TARSO ? Essa guerra pode até ser usada favoravelmente. Temos que mostrar aos investidores que o País é um ambiente propício. É favorável ao capital estrangeiro, tem uma sociedade razoavelmente tranqüila.