26/11/2024 - 6:30
Desde que foi demitido de uma empresa de pintura de fachadas de prédios, há cerca de cinco anos, João dos Santos Neves não conseguiu mais voltar a trabalhar.
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Seu rendimento mensal, que à época passava de dois salários mínimos (algo em torno de R$ 2 mil), chegou a zerar na pandemia de covid-19, mesma época em que ele passou a tratar a artrose que acomete seus dois joelhos e que o colocou, na metade de 2019, sobre muletas permanentes – além de tê-lo feito perder o emprego.
“Nesse tempo todo, só consegui sobreviver graças aos R$ 600 que eu passei a receber todo mês do [programa] Bolsa Família”, conta à DW, sentado na cama improvisada que ele montou dentro de um barraco feito com restos de madeira, às margens de um pequeno córrego que atravessa o Jardim Germânia, na Zona Sul de São Paulo.
No começo deste ano, enquanto esperava pelas cirurgias de correção nas pernas, Neves entrou na lista do Benefício de Prestação Continuada (BCP), que garante um salário mínimo (hoje de R$ 1.412) a idosos com alguma deficiência.
“Com esse dinheiro consigo pagar o aluguel e comprar os remédios para dores, mas fica faltando para comer”, afirma. “No fim do mês, tem dia que tenho que escolher entre almoçar ou jantar.”
“É o típico caso de insegurança alimentar moderada”, categoriza Rodrigo Afonso, diretor-executivo da Ação da Cidadania, rede de combate à fome. O conceito diz respeito àqueles que têm algum acesso à comida, mas que enfrentam restrições cotidianas – como, por exemplo, ter que abrir mão de alguma refeição durante o dia.
Dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que, até o fim do ano passado, pouco mais de 4% da população do país estava nessa situação. Em números absolutos, eram 3,2 milhões de pessoas. Mas o contingente de brasileiros que enfrentou algum tipo de insegurança alimentar era maior: 21,6 milhões (27,6%). Um deles é João dos Santos Neves, que abre esta reportagem.
“Achei que nunca passaria fome na vida. Fui experimentar isso já velho.”
Combate à fome virou bandeira do Brasil no G20
O tema voltou ao primeiro plano depois que o governo brasileiro aproveitou sua presidência temporária no G20 – grupo que reúne as 19 grandes economias do mundo, além das uniões Europeia e Africana – para lançar uma agenda global contra a fome e a pobreza.
Assinado pelos países que compõem a sigla no encontro desta semana, no Rio de Janeiro, o documento pretende alicerçar uma série de políticas nacionais e estruturas globais de financiamento de medidas para diminuir tanto a quantidade de pessoas em extrema pobreza quanto em algum nível de insegurança alimentar.
Segundo a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, na sigla em inglês), 9% da população do planeta estava nessa situação em 2023 – o que representa um grupo de 733 milhões de pessoas.
A aliança terá cinco escritórios espalhados pelo mundo: Roma (Itália), Addis Abeba (Etiópia), Bangkok (Tailândia), Brasília e Washington (Estados Unidos).
Uma das inspirações para o trabalho da aliança deve ser justamente a experiência brasileira com o Bolsa Família.
Especialistas ouvidos pela DW nos últimos dias são unânimes ao dizer que o programa é, de fato, exemplo para outros países no combate à fome e à pobreza. Mas não deixam de apontar problemas.
A reportagem procurou o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS) para ouvir a pasta sobre os pontos detalhados a seguir, mas não obteve resposta até a publicação deste texto.
Economista vê injustiça na distribuição do benefício
Laura Müller Machado, que coordena os cursos de Gestão Pública do Insper, em São Paulo, vê o Bolsa Família como “um dos grandes instrumentos globais de ação contra a persistência de famintos e pobres”, mas argumenta que o programa precisa de ao menos dois ajustes: no piso per capita oferecido aos beneficiários e no dispositivo de transição para o mercado de trabalho.
No primeiro caso, ela aponta injustiça nos valores pagos a diferentes famílias. “Como o piso é de R$ 600, um casal sem filhos que se cadastra dessa forma acessa o valor per capita de R$ 300. Se ele tiver um filho, porém, tem um adicional de R$ 150”, calcula. “O problema é que, com isso, o montante total vai para R$ 700, mas o per capita cai para R$ 250. Ou seja: famílias que têm filhos têm menos renda do que aquelas que não têm.”
Além disso, pelo menos desde a pandemia, o cadastro do Bolsa Família também tem estimulado declarações falsas. Antes, famílias que acessavam o programa compartilhavam um valor único – geralmente o piso – entre si. “Não havia motivo para tentar declarar errado, porque se fosse um casal, era o valor dividido por dois, mas, se era uma única pessoa, recebia esse valor já dividido”, explica Laura.
Hoje, ao contrário, um único indivíduo consegue acessar, sozinho, o benefício integral. “O que está acontecendo, então, são casais que recebem, cada um, R$ 600 de forma separada. A renda da casa vai para R$ 1,2 mil, sem considerar filhos.”
É um dos motivos pelos quais o orçamento do Bolsa Família cresceu nos últimos anos. Ao final de 2024, segundo o MDS, o programa custará R$ 168 bilhões. Há cinco anos, o montante previsto para ele estava na casa dos R$ 30 bilhões.
Apesar disso, essa elevação de 460% se explica, principalmente, pelos reajustes – que alguns especialistas sugerem terem sido “eleitoreiros”, sobretudo o último que o ex-presidente Jair Bolsonaro fez, às vésperas do pleito de 2022, passando o piso do programa de R$ 400 para R$ 600. Há cinco anos, o valor médio pago era de R$ 186, enquanto hoje ele é de R$ 681 – uma diferença de 266%.
Apesar disso, o volume não dá conta das exigências mínimas de uma família. O Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) calcula que, para que uma casa com quatro pessoas atravesse o mês arcando com custos básicos, o salário mínimo brasileiro deveria ser de cerca de R$ 6,7 mil, ou quase cinco vezes maior do que o piso atual.
Inserção no mercado de trabalho
Laura Machado, que administrou a pasta de Desenvolvimento Social do governo paulista em 2022, também defende incentivos mais robustos para o retorno dos beneficiários ao mercado de trabalho.
“O Bolsa Família dá alívio a quem está na extrema pobreza, mas precisa se aperfeiçoar para entregar autonomia também. Hoje, quando um beneficiário consegue isso, por meio de um emprego, ele não é premiado pelo programa. Ao contrário, ele sai perdendo”, diz.
Ela se refere ao mecanismo atual do Bolsa Família, a “Regra de Proteção”, que garante que, se a renda de cada membro de uma família subir até meio salário mínimo (R$ 706), ela continuará recebendo metade do piso do benefício (R$ 300) por pelo menos dois anos. Segundo o MDS, eram 2,6 milhões de lares nessa situação até o mês de outubro.
“Mas esse mecanismo não resolve o problema”, acredita. “Não tem um meio de premiar – ao contrário, os beneficiários que conseguem trabalho ou perdem o recurso ou ele cai pela metade. Também não é gradual e tampouco é lento – porque há muita gente que precisa de mais de dois anos para ter segurança no emprego.”
Para Rodrigo Afonso, da Ação da Cidadania, o programa deveria incluir políticas que ajudem a gerar vagas de trabalho permanentes para os beneficiários, estabelecendo maneiras de tirar gradualmente as famílias do programa. “Um exemplo positivo disso são as parcerias que o governo está fazendo com algumas grandes empresas para contratar essas pessoas. Isso deve ser aumentado”, opina.
Demora para acolher novos beneficiários
Para Afonso, porém, o principal ajuste que o programa deve fazer é na sua “porta de entrada”. Ele aponta que os critérios de adesão – o principal deles é que a renda per capita dentro de uma família não pode ser maior do que R$ 218 por mês – têm sido atravessados por outros fatores “extras, que não sabemos exatamente quais são”, o que tem atrasado a entrada de novas famílias no programa.
Hoje, segundo o governo, o Bolsa Família tem 20,7 milhões de famílias beneficiárias. Há cinco anos, eram 13,5 milhões.
O diretor da Ação da Cidadania também critica a gestão do orçamento do programa. Hoje, o governo envia uma previsão dos gastos com o Bolsa Família a cada ano ao Congresso que, então, ajusta esse montante a partir de suas demandas. “O problema é que há períodos em que faltam recursos, porque não tem nada fixado – e daí a primeira coisa que o governo da ocasião faz é diminuir essa ‘porta de entrada’.
Aconteceu na gestão Bolsonaro, por exemplo, quando barrou a entrada de novos beneficiários porque não tinham recursos previstos”, diz .
“Precisamos criar mecanismos que garantam que o dinheiro não falte, que não fique dependendo de aprovações anuais, porque trata-se de uma política de Estado, não de governos.”
Para advogada, combate à fome também passa por garantia de acesso à alimentação saudável
Para a advogada Léa Vidigal, o combate à fome não depende só de uma política como o Bolsa Família. “Porque o problema da insegurança alimentar não é apenas de renda, mas de acesso a alimentos saudáveis”, frisa ela, que lançou um livro em que analisa, entre outras questões, o papel do programa na soberania alimentar.
“Muitas pesquisas mostram como há um impacto muito forte na redução da fome, [graças ao Bolsa Família] mas que não significa uma maior diversificação alimentar. Em suma, os beneficiários comem mais, mas não melhor”
Segundo Vidigal, muitos beneficiários tendem a consumir alimentos ultraprocessados. “É por isso que se trata de pensar não só na renda, mas na produção, na distribuição e no consumo alimentar. É mais amplo.”
No recém-lançado Direito Econômico e Soberania Alimentar (LiberArs, 2024), a advogada defende que a ideia de soberania alimentar deve fazer parte da “cesta de políticas sociais” de combate à fome e à pobreza na qual o Bolsa Família é o elemento central, mas não o único. “Ele não resolve tudo. É preciso ir além dele.”
No livro, a advogada elenca outros dois eixos importantes além do Bolsa Família: um programa robusto de alimentação escolar – o Brasil já tem o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) – e compras governamentais de alimentos de pequenos produtores, com a devida distribuição logística.
Vidigal argumenta que se o Brasil quiser prosseguir com a aliança que mostrou ao mundo no G20, no Rio de Janeiro, terá que reexaminar suas políticas de segurança alimentar, “que hoje estão carentes de reflexão”. “É só assim que comida saudável vai, de fato, chegar em quem precisa.”
No dia em que conversou com a DW, em uma tarde de novembro, João Neves já tinha almoçado e sabia o que ia jantar: arroz, batata e frango. Com a despensa abastecida por uma cesta básica fornecida por um instituto da região, a dúvida se teria o que comer foi adiada por uma semana. “Até lá eu não quero pensar nisso.”